Fabrício Carpinejar
A mulher esperaria na cafeteria. Era
manhãzinha, 7h30, véspera de escola e de expediente.
O escritor José Cardoso Pires, no meio do
caminho, falou para esposa que já voltava. Subiria ao apartamento para buscar o
caderno de anotações na gaveta da cômoda. Seu moleskine vermelho, talismã de
inspirações e personagens súbitos, essencial como os óculos de leitura.
Quando ele foi descer, já no elevador, sofreu
um derrame. Um leve desmaio, rápido, tal piscar de olhos. Sentou um pouco no
chão, para acalmar os nervos.
Recomposto do choque, ao empurrar a porta da
rua, ele viu que algo de estranho e sério aconteceu: não lembrava quem era e o
que precisava fazer. Foi acometido de uma amnésia total.
Estava esvaziado de referências, jogado a uma
infância adulta.
Em pânico, seguiu reto pela multidão, encarando
o tamanho dos prédios. Usou os cotovelos para se defender da pressa do turbilhão
humano.
Não tinha mais nenhuma recordação viva. Um
pequeno derrame apagou a memória, o mapa de seus desejos. Procurando se enganar e disfarçar o horror,
andava resoluto, decidido, para frente. Percorreu três quarteirões, porém sentiu
cansaço, vontade de pensar melhor e organizar as ideias.
Entrou no café, onde sua esposa lhe aguardava
no balcão para beber um ristretto, hábito do casal antes de mergulhar no ritmo
alucinado do trabalho.
Mas ele não lembrava que tinha esposa, família,
destino profissional.
O que impressiona é que a primeira pessoa que
ele procurou depois do esquecimento foi a própria mulher. Recusou outras
cinquenta que estavam presentes no lugar.
Foi falar com a sua mulher. Sorteou seu rosto
entre todos. Elegeu seus cabelos castanhos e longos diante de dezenas de
candidatos do momento.
Não hesitou em atravessar o salão lotado para
cumprimentá-la, repetindo o encontro fundador do casamento de quarenta anos.
Assim como no baile da faculdade superou a timidez medrosa e pediu uma dança.
Repetiu aquilo que não sabia.
Ainda que não conservasse nenhuma réstia de
passado, aproximou-se dela e perguntou:
- Onde estou? Pode me ajudar?
Ela riu, achando que seu marido armava uma
brincadeira, perdoou a piada estalando um beijo em sua boca. Ele se assustou com
o gesto.
- Que isso?
- O que foi, amor?
- Amor?
- O que foi, amor?
- Amor?
Sim, amor, ele entenderia depois quando
recuperasse a saúde.
Amava obsessivamente sua Marina a ponto de se
apaixonar de novo e sempre.
Talvez fosse se apaixonar cada vez que a
enxergasse. Com alma ou sem alma, com memória ou sem memória.
Seu corpo era um cavalo obediente à dona.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
""Erótica é a alma""
Adélia Prado