quarta-feira

Raio-X de um amor sem fim

Xico Sá

Nem me lembro mais o dia em que partiste. Continuas aqui dentro de casa e do esqueleto deste velho homem. Não há data nem memórias para este tipo de partida. Apenas deixei de regar as plantas por um tempo, como se fosse uma cerimônia de adeus. No mais… representas todos os meus fantasmas e surtos de sempre, as assombrações de quem fracassa na esquina do Exagero com a Má-Sorte, mala-suerte amém.


Fratura exposta, raio-X da calavera de um drama mexicano, como a culinária temática da última noite, olvidas, cariño? Ou já havias partido de véspera? Nunca se sabe. Na dúvida assumo a culpa, porque amor sem culpa é Roma sem hóstia.

É o que eu mais ou menos dizia: as mulheres são todas diferentes. Quando se perde um homem, há outro igual ao virar da esquina. Quando se perde uma mulher, é uma vida. Desde o dia em que cai aos pés de certa dama, não sabia se estava a ganhá-la ou perdê-la. O AMOR É FODIDO, do amigo ultramarinho Miguel Esteves Cardoso, me ensina coisas, aqui releio as linhas do fado, reinventando Capibaribes e Tejos.

Ao contrário das pulgas sado-camonianas, este gajo, em passeio comigo em certa noite das antigas, na cidade de São Paulo, boate Love Story, dizia que as lágrimas das raparigas são coquetéis sem álcool.

Dizer “não chores” funciona sempre, porque só mencionar o verbo “chorar” emociona-as e liberta-as (na próclise amorosa fora de tempo e lugar, acredite), dando-lhes carta branca para chorar ainda mais. As raparigas, depois de chorar, soprou-me o mesmo gajo, lirismo-Morrisey, ficam com vontade de fazer amor, compadre.

Eu vi o fim no dia em que ela chupou meu pau em prantos. Com a devoção de sempre, mas sem a paixão de outrora. E assim, às lágrimas, fomos dando tintas finais ao idílio. Mas agora, no momento em que gasto o latim, acabamos de chegar de outro tipo e vale de lágrimas, o além sem volta, por supuesto.

Mas ela ainda está aqui comigo, eu sinto.

Guardo o ridículo costume de não deixar mulher que amo ir embora nunca. Ainda mais ela, a mais sublime. Só desgrudará com o meu cadáver.

Nem me lembro o dia em que partiu a desalmada, tampouco saiu desta casa.

Cai um objeto, um ralador de queijo que me faz lembrar do risoto dela. O ralador ganha vida e me rala a pele. Sangue, sangue, sangue!

Hitchcock do amor, sinto os utensílios do lar em permanente mal-assombro e suspense.

Aqui no mesmo sobrado morreu um homem, conta uma vizinha. Nem ligo. Só o que restou do amor não inteiramente gasto me assusta. Tais partículas rondam o mundo e nunca descansam, reencarnando em outros seres, coitados.

Nem me lembro mais o dia em que partiste. Para o meu coração brega, amoroso e sentido, ontem continua sendo sempre hoje. Como o para-choque de um caminhão que vai e volta na rodovia da Saudade com a mesma frase triste.

(Na vitrola, toca Siboney, claro, play again, viver é bolero).

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""Erótica é a alma""

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