sábado

FUI O QUE AINDA POSSO SER

Fabrício Carpinejar


Eu amo quando não me forço a existir. Reduzir meu corpo e o dela a um barco estreito e deixar todo o resto para o mar. O que falta fazer não me cansa. Ainda não cumpri tanta coisa, que não me apresso em pontuar. Farto-me de esperança. Vou imaginando devagarinho para não acabar. Gostaria de preparar as bainhas da calça dela com alfinetes e perguntar de baixo: está bom? Gostaria de descobrir em suas costas uma pinta de infância e conversar com a pinta com a calma de um biólogo. Gostaria de cumprir realmente uma surpresa, sem a ânsia de contar metade pelo caminho. Gostaria de dar presentes pouco interessado na retribuição. Gostaria de segurar a escada quando ela puxa as roupas de inverno do armário, não me preocupar com a demora e ajudar a escolher as peças que ainda prestam. Gostaria de chegar adiantado a um compromisso, sentar em alguma escada para que pudéssemos lembrar de músicas antigas e inventar o que foi salteado. Gostaria de encontrar restaurantes pequenos, desconhecidos, e beber o riso e rir da bebida. Gostaria de ser seu confidente, escutar o que ela diria ao meu respeito e concordar com as mudanças, desprezando a vaidade. Gostaria de reparar quando ela emprega uma palavra diferente e cuidar para não gastar tanto as velhas. Gostaria de adivinhar o que ela está pensando para devolver seu desejo antes dele tomar banho. Gostaria de cortar suas cutículas para entender sua solidão. Gostaria de soprar as formigas do pote de açúcar, cuidando para não transbordar o vento. Gostaria de perceber o momento em que o café e as giletes estão terminando. Gostaria de enterrar minhas mãos no bolso do casaco dela e esgarçar o forro. Gostaria de ser bem-humorado ao errar e mal-humorado ao acertar. Gostaria de dormir até tarde e só virar para prendê-la. Gostaria de deixar os vidros fechados antes da chuva. Gostaria de dar três voltas na chave e não esquecer que estou dentro de mim. Gostaria de parecer inteligente diante de pinturas abstratas. Gostaria que ela não perdesse os amigos para ficar comigo. Gostaria de levá-la ao cinema para depois recuperar as legendas em sua boca. Gostaria de me assustar mais seguido para procurá-la com veemência. Gostaria de recolher as migalhas da mesa e arremessar o alvoroço das aves pela sala. Gostaria de sussurrar comida na colher de pau. Gostaria de conduzir um táxi para comentar o tempo. Gostaria de espalhar cigarras e vaga-lumes pela grama e vê-la tropeçar em minha voz. Gostaria de ter sempre a sinceridade de quem sente fome.

Eu, tu, ele

Caio Fernando Abreu

Tateio, tateias, tateia. Ou tateamos, eu e tu, enquanto ele se movimenta sem dificuldade entre as coisas? Sei pouco de ti, apenas suspeito da tua existência desde quando descobri que nem eu nem ele éramos os donos de certas palavras. Como se tivesse percebido um espaço em branco entre ele e eu e assim - por exclusão, por intuição, por invenção - te adivinhasse dono desse espaço entre a luz dele e o escuro de mim. Tateias, também? De ti, quase não sei. Mas equilibras o que entre ele e eu é pura sombra.
Estou me afastando, estou indo embora e preciso que me entendas antes que eu vá, crucificado na parte externa do vagão de um trem em alta velocidade. Tento devagar, mais claro: ele não se afasta. Dia após dia, eu noto, torna-se mais simpático, mais eficiente, mais solícito - para utilizar palavras que não sei bem o que significam, mas imagino sempre alguém sorrindo muito, fazendo reverências, curvando constantemente a cabeça, como uma gueixa. Gueixa, ele, a grande puta, com seu silêncio de passinhos miúdos e pés amarrados. Preciso tentar certa ordem no que digo, e dizer de novo, vê se me entendes: ele não se afasta, mas é dentro dele que eu me afasto. Dentro dele, eu espio o de fora de nós. E não me atrevo.
O que vejo nos outros, com seus grandes poros abertos, são caras demasiado vivas. As caras de fora se debruçam sobre ele e eu tenho medo, eu nunca poderia olhar de frente para todos aqueles olhos boiando na superfície branco-gelatinosa, raiada de veiazinhas vermelhas, e eu sinto nojo. Não dos olhos, mas do interior das caras que transparece nas veiazinhas. Também não são as bocas, mas os gosmosos vermelhuscos de dentro, quando se abrem demasiado. Os inúmeros pontinhos pretos dos narizes, às vezes subindo para a testa, entre as sobrancelhas, o interior rosado dos narizes, as goelas abertas com suas umidades móveis ao fundo, cheias de pequenos espasmos, miúdas convulsões. Quando as grandes caras vivas se debruçam, sinto que transpareço nas veiazinhas dos olhos deles, e tenho medo que apenas um piscar me lance para fora, entre as coisas pontudas. E quando ele abre sua boca movediça para escarrar palavras, gotas de saliva e mau hálito, tenho medo de ele ser essa palavra, essa gota, esse hálito. O mesmo de quando esfrega as palmas das mãos e solta no ar os feixes de energia, como se fosse uma vibração, não um ser.
Sempre posso parar, olhar além da janela. Mas do interior do trem, nunca é fixa a paisagem. Os pés de ipê coloridos misturam-se às paredes de concreto e as paredes de concreto às ruazinhas de casas desbotadas e as ruazinhas de casas desbotadas às caras das lavadeiras na beira do rio, e desta distância essas caras não são móveis nem vivas, mas sem feições, esculpidas em barro sob as trouxas brancas de roupa suja, e outra vez o roxo e o amarelo dos ipês e o marrom da terra e o bordô das buganvílias e o verde de uma farda militar atravessando os trilhos. Há um excesso de cores e de formas pelo mundo. E tudo vibra pulsátil, fremindo.
Daquela última tarde de luz, o que me ficou na memória foi o visgo frio do suor nas palmas das mãos, os inúmeros pontos luminosos vibrantes dos automóveis, minhas frontes estalando com o barulho. Os automóveis eram faíscas coloridas metálicas voando sobre o cimento. Eu apertava minha tontura com as palmas molhadas das mãos, sem saber se ia, se voltava ou permanecia parado quieto entre aqueles pontos alucinados de luz girando em volta de mim. Devo ter começado a gritar, porque ele cerrou a boca com força, não me deixando escapar por sua garganta fechada.
Mas era a ti, a ele ou a mim que o homem visitava às vezes? De quem seria a língua sem nojo que explorava o mais fundo de todos os buracos do corpo dele? Da janela eu observava as mãos abrindo apressadas o fecho das calças, os dedos hábeis afastando panos, as narinas sugando o cheiro secreto das virilhas, O grande corpo vivo e móvel do homem, atrás das grades eu queria minhas aquelas mãos que o tocavam e também meus aqueles dedos e minhas ainda aquelas narinas e aquela língua lambendo o membro rijo dele até deixá-lo empinado o suficiente para, com muito cuidado, entrar rasgando de prazer e dor. Eras tu, era eu ou era ele quem torcia lentamente o corpo até desabar de costas na cama, e contornando com as coxas abertas o tronco e a bunda do homem pudesse assim senti-lo dentro de mim, de ti ou dele, como a fêmea deve sentir seu macho, cara a cara, jamais como um homem recebe a outro homem, o rosto contra a nuca, nesse amor feito de esperma e pêlos, de suor e merda? Atrás da janela dele, eu olhava sem me permitir. Mas nosso orgasmo era o mesmo, e éramos então um só os três, cavalgados por esse homem que esgotávamos com a sede das nossas línguas. Nesses momentos, eu conhecia a tua face tão detalhadamente quanto a dele e a minha. E não me assustavam os poros demasiado abertos, nem me enojava aquele gosmoso de dentro dos buracos.
Quanto a ti, já reparaste como o mundo parece feito de pontas e arestas? Já chamei tua atenção para a escassez de contornos mansos nas coisas? Tudo é duro e fere. Observo, observas como ele se move sem choques por entre os gumes. Te parece dócil, assim sinuoso, evitando toques que possam machucá-lo? Pois a mim parece falso, conheço bem suas tramas e sei de todas as vezes que concedeu para que o de fora não o ferisse. Olha, ouve e repara: essas sinuosidades são de cobra, não de ave.
Só às vezes julgo compreender. Então tenho vontade de abrir todas as janelas da casa para que o sol possa entrar. É isso que me ocorre pelas manhãs, sempre à mesma hora, depois de ouvir os ruídos que ele faz antes de sair. Fico atento à água escorrendo da torneira, ao rascar da escova contra os dentes, à água da privada levando para os esgotos os detritos recusados pelos intestinos, à água limpando os resíduos de sono no canto dos olhos, à água fria do chuveiro despertando os músculos, à água aquecida para o café, fico atento a tudo. E água, água, água e água, eu repito todas as manhãs, e mesmo que continue o dia inteiro entre lençóis, a mão inventando prazeres escondidos entre as pernas, há sempre uma parte de mim que o acompanha pelas ruas, no seu trajeto sujo entre as faíscas metálicas dos automóveis, distribuindo os primeiros sorrisos falsos do dia, e pelo dia adentro afora, cumprindo sem hesitações o seu bem traçado roteiro. Sabe tudo o que quer, ele, o grande porco. E sabe exatamente como consegui-lo. Pelo dia afora, adentro, essa parte de mim que vai com ele tenta extravasar-se pelos seus olhos, pela sua boca, para alertar as grandes caras móveis que o observam com simpatia. A cada tentativa, ele me pressente e me rechaça, ele me empurra para o fundo de si para que eu não o desmascare. E me rouba a voz, e me leva o gesto, fazendo com que me cale e me imobilize impotente entre as pontas duras das quais ele se desvia, porco bailarino capaz de todas as baixezas pelo solo principal. É sem testemunhas que eu o desmascaro todas as manhãs, enquanto escuto escorrer a água com que supõe lavar toda a sua sujeira. Mas te investigo, te busco, te suspeito cúmplice de mim, não dele, porque a tua ajuda é a única que posso esperar, então insisto sempre se me entendes, e volto a perguntar então, me entendes? assim, me entendes, tu? agora, me entendes, ou nunca?
Era agradável quando a moça vinha com suas tabelas, seus gráficos e compassos para falar do movimento dos astros sobre as nossas cabeças, sábia e distraída, desenhando pirâmides, triângulos, esferas e losangos nos papéis quadriculados. Foi numa das primeiras vezes que ele tentou afastá-la, rindo grosso, como as pessoas costumam rir dessas coisas, preferindo sempre os porcos às aves. Foste tu quem me ajudou daquela vez, a fechar violento a boca dele até seus dentes se cerrarem a ponto de quebrar? Pois não era apenas meu aquele esforço, eu soube, e essa quem sabe tenha sido a primeira vez que te descobri existindo paralelo a mim e a ele. Ou não importam cronologias, se coexistias mesmo anterior à minha consciência de ti. Quanto à moça, continuava a vir, dizia sempre que quando a Lua transitasse por Aquário. Mas eu nunca soube de constelações: limitava-me a recebê-la, e parecia uma menina cheia de fé em tudo aquilo que suspeitava real, embora invisível.
Meus dias são sempre como uma véspera de partida. Movimento-me entre as pontas como quem sabe que daqui a pouco já não vai estar presente. As malas estão prontas, as despedidas foram feitas. Caminhando de um lado para outro na plataforma da estação, só me resta olhar as coisas lerdo e torvo, sem nenhuma emoção, nenhuma vontade de ficar. As janelas abrem para fora, os bancos parecem-se aos bancos e os vasos foram feitos para se colocar flores em seu oco. As coisas todas se parecem a si próprias. Nada modificará o estar das coisas no mundo, e a minha partida ontem, hoje ou amanhã, não mudará coisa alguma. Cada coisa se parece exatamente com cada coisa que ela é. Assim eu próprio, me parecendo a mim mesmo, de um lado para outro, entre cigarros sem sabor, jornais sangrentos e a certeza de que o único fato que poderia deter minha partida seria a tua aceitação deste convite: não queres me ajudar a matá-lo?
Houve um dia em que o homem não veio mais. E sem saber se teria sido eu, tu ou ele quem o afastara, nesse mesmo dia escrevi qualquer coisa como uma oração que me pareceu ridícula. Mas revisitando papéis antigos agora, ela pulsa como se tivesse sido apunhalada e, percebo, como se tivesse sido escrita também para ti, para ele e para mim. Assim:
eu não estou esperando por esse homem que não é só esse mas todos e nenhum como uma sede do que nunca bebi sem forma de águas apenas na estreiteza do aqui agora eu espero por ele desde que nasci e desde sempre soube que na hora da minha morte misturando memórias e delírios e antevisões um pouco antes a última coisa que perguntarei seria um mas onde está mas onde esteve esse tempo todo que me lanhei sem ti e para me alegrar depois quem sabe talvez enfim desista ou sorria lindo sem dentes sorria luminoso na escuridão da minha boca sorria vasto como nunca foi possível e cuspa qualquer coisa como então você esteve sempre aí uma vida de procuras sem te achar e silêncio para então morrer de morte morrida sem volta de vida gasta marcada de muitas cicatrizes de vida retalhada por muitos cortes mas nunca mortais a ponto de impedir este ridículo até na hora de minha morte amém.
Mas esta cara de mim, recém-desperta, revigorou-se aos poucos e sem suspiros, porque não há o que lamentar, e pensa crua, a cara descarada: pois não nos separamos, os três. Quando me julgo fora, estou dentro. E quando me suponho dentro, estou fora. De ti ou dele, de mim em mim, tríplice engastado, embora pareça confuso assim formulo, e me parece quase claro enquanto ruge a cidade longe e debruço este corpo de nós sobre os sete viadutos: tríplice engastado, tríplice entranhado, tríplice enlaçado. Tríplice inseparado para sempre, a morte de um é a morte de três, não quero que me ajudes a matá-lo porque mataria a ti e também a mim. E me recomponho, e te recomponho, e recomponho a ele, que é também eu e também tu.
A moça disse que a Lua passava por Escorpião, e contou: sem dentes, rasgado, fragmentos de vômito endurecido grudados nos pêlos do peito, o homem a perseguia. Antes que a tocasse, ela encontrou o animalzinho branco, de focinho rosado, e apanhando um pedaço de pau bateu, bateu e bateu até que o bicho se tornasse um mingau de sangue e ossos partidos e pêlos raros onde boiava um par de olhos abertos que não morriam. Eu contei: pelo tronco da árvore, de um lado a outro do precipício, eu atravessava. Foi quando parei, com medo do abismo. Não voltaria, nem iria em frente. Então olhei a parede do precipício e vi os cachos verdes de uvas e meu medo começou a passar porque eu não sentiria fome nem morreria pois logo viria a vindima, o tempo maduro das uvas. Oníricos, trocávamos sonhos os dois, os três, os quatro. E a fêmea emboscada no corpo da moça chamava por mim, por ti, por ele, sem se importar que fôssemos três. De nós três, ela sabia e queria. Antes de partir, ainda escreveu no papel cheio de gráficos, olhando para nós de um em um, guarda isso: o outro também se busca cego, o outro também e sempre é três.
Tempos depois - agora, para ser preciso percebo: é pelos corredores escuros do labirinto que caminhamos tateando, os três, à procura do vértice. Sei que não entendes, sei que ele também não entende. Do teu dia, quase não sei, mas sei do teu labirinto em ti, como sei do labirinto dele em mim, do meu labirinto em ti. E também não entendo.
Preciso parar. Estou cansado. Pela cabeça, essa luz que não sei se é compreensão ou loucura. É de mim, de ti ou dele que sai essa voz contando o sonho de ontem? Como se fosses tu, assim entras no teatro e te chamam dentro do sonho e te chamam para fazer o papel do sonho de alguém que não veio, e dizes que nunca viste a peça e nunca leste o texto e nada sabes de marcações intenções interiorizações e te dizem que não importa porque é só um sonho e um sonho não precisa ensaio, e já não sabes se começas a rir ou a gritar, então foges para encontrar o outro, mas o rosto da moça tem os olhos do homem e a boca da moça, os seios da moça são os seios da moça, aqueles mesmos, cujos bicos duros roçavam tua barba malfeita quando os beijavas, mas o sexo da moça é o sexo do homem, aquele mesmo que te inundava de esperma quente, e não sentes medo nem nojo, mas te afastas confuso e caminhas caminhas em busca do teatro para entrar em cena e desempenhar tão bem quanto possas o teu papel de sonho do sonho de outro, depois procuras procuras dentro do teatro, em pirâmides de estreitos corredores, e continuas procurando o palco, o vértice, a câmara real, a tua deixa, a tua marca, e antes de acordar não pensas, ou pensas, sim, eu não sei, ele não sabe, tu não sabes nem ninguém se de repente não estarás perdido nem não sabes o papel de cor, pois o palco é a procura do palco e o teu papel é não saber o papel e tudo está certo e a aparente desordem se ordena súbita e a grande ordem de todas as coisas é o caos girando desordenado assim como deve girar o caos, e assim mergulho eu e assim mergulhas tu e assim mergulha ele: a tontura de nossos seis passos equilibra-se instável e precisa sobre o fio da navalha. Mas - sei, sabes, sabemos as uvas talvez custem demais a amadurecer. E quase não temos tempo.

Frase

Pablo Neruda
"Amo o pedaço de terra que tu és,
porque das campinas planetárias outra estrela não tenho.
Tu repetes a multiplicação do universo."

sexta-feira

Aos apaixonados

Rubem Alves Você já fotografou o amor? O Taj Mahal é um mausoléu situado em Agra, uma pequena cidade da Índia. A obra foi feita entre 1630 e 1652 com a força de cerca de 22 mil homens, trazidos de várias cidades do Oriente, para trabalhar no sumptuoso monumento de mármore branco que o imperador Shah Jahan mandou construir em memória da sua esposa , Aryumand Ban Begam, a quem chamava de Mumtaz Mahal ("A jóia do palácio"). Ela morreu após dar à luz o 14º filho, tendo o Taj Mahal sido construído sobre o seu túmulo, junto ao rio Yamuna.Assim, o Taj Mahal é também conhecido como a maior prova de amor do mundo, contendo inscrições retiradas do Corão. É incrustado com pedras semi preciosas, tais como o lápis-lazúli entre outras. A sua cúpula é costurada com fios de ouro. O edifício é flanqueado por duas mesquitas e cercado por quatro minaretes.

Dedico esta crônica aos apaixonados, mesmo sabendo que servirá para nada: é inútil falar aos apaixonados. Os apaixonados só ouvem poemas e canções. A paixão, experiência insuperável de prazer e alegria, pelo fato mesmo de ser uma experiência insuperável de prazer e alegria, coloca o apaixonado fora dos limites da razão. Todo apaixonado é tolo. Pode ser que ele escute a fala da razão. Escuta mas não acredita. Diz ele: "O meu caso é diferente!" Tolo mesmo é quem tenta argumentar com os apaixonados.
Começa, pois, assim, minha inútil meditação com um verso terrível de T. S. Eliot. Ele está rezando. Ele sabe que somente Deus tem poder para lidar com a loucura da paixão. Ele reza assim: : . . livra-me da dor da paixão não satisfeita e da dor muito maior da paixão satisfeita".
Todo mundo sabe que paixão não satisfeita dói. Mas poucos sabem que a paixão só existe se não for satisfeita. A paixão é fome. Ela só floresce na ausência do objeto amado. Mais precisamente, ela vive da ausência do objeto amado. Não se trata de ausência física, do objeto amado distante, longe. A dor da ausência física tem o nome de saudade.
Saudade tem cura. A saudade é curada quando o seu objeto volta. A dor da paixão é diferente. Não tem cura. A saudade do objeto amado, mesmo quando ele está presente, é o perfume característico da paixão. Cassiano Ricardo sabia disso e escreveu. "Por que tenho saudade / de você, no retrato, ainda que o mais recente? / E por que um simples retrato /mais que você, me comove, se você mesma está presente?"
Que coisa mais esquisita! Como pode ser isso? Como se pode sentir saudade de algo que está presente? A resposta é simples: a gente sente saudade de uma pessoa presente quando ela está se despedindo. Cecilia Meireles, desenhando sua avó morta, a quem ela muito amava, disse: "Tu eras uma ausência que se demorava; uma despedida pronta a cumprir-se". Dirão "É natural; um dia ela possuirá o objeto da sua paixão. Mas a 'dor muito maior', da paixão satisfeita, não tem mais esperanças. O objeto se desfez. Ela vive na tristeza do objeto perdido".
Escrevi uma história sobre isso. A Menina era apaixonada pelo Pássaro Encantado. Mas ela sofria porque o Pássaro era livre, O Pássaro Encantado era sempre uma ausência que se demorava, uma despedida pronta a cumprir-se. O Pássaro lhe disse que era preciso que fosse assim, para que eles continuassem apaixonados. Ele sabia que a paixão não ama pássaros em vôo. Mas a Menina não acreditou. Prendeu-o numa gaiola.
Gaiola? Há as feitas com ferro e cadeados. Mas as mais sutis são feitas com desejos. Esquisito o que vou dizer: a alma é uma biblioteca. Nela se encontram as estórias que amamos "Romeu e Julieta", "Abelardo e Heloisa", "O paciente Inglês", 'As Pontes de Madison", "O Amor nos Tempos Cólera", "A Menina e o Pássaro Encantado". As estórias que amamos revelam a forma do nosso desejo. Delas escolhemos uma, é a nossa gaiola. Gaiola na mão, saímos pela vida à procura do nosso Pássaro. Quando imaginamos havê-lo encontrado, uh, que felicidade!" Ficará feliz em nossa gaiola. Será o amante da nossa estória de amor: eu prá você, você prá mim. . . Nós colocamos lá dentro e pedimos que nos cante canções de amor.
Acontece que o Pássaro também tinha a sua estória. E era outra. Todo Pássaro deseja voar. Ele bate suas asas contra as grades, suas penas perdem as cores e o seu canto se transforma em choro. E, de repente, ele se transforma. Não mais o reconhecemos, é um outro. Essa é a razão por que a dor da paixão satisfeita é muito maior.
Contada assim, a estória parece ter um vilão e uma vítima. A verdade é que os dois são vilões, os dois são vítimas. O desejo da gente é sempre engaiolar o outro e levá-lo pelos caminhos que são nossos. Isso vale para tudo: marido-mulher, pai-filha, mãe- filho, patrão-empregado, professor-aluno... Não admira que Sartre tenha dito que "o inferno é o outro" Não haverá uma saída.
Lembro-me de um pequeno poema de Pearís, que sugere uma relação sem gaiolas:
"Eu sou eu.Você é você.Eu não estou nesse mundo para atender às suas expectativasE você não está nesse mundo para atender às minhas expectativas.Eu faço a minha coisa.Você faz a sua.E quando nos encontramosÉ muito bom".

Frases do livro: A Insustentável Leveza do Ser

Leia e se encante...eu sempre volto...A insustentável leveza do ser...num eterno retorno

"Os amores são como impérios:desaparecendo a idéia sobre a qual foram construídos, morrem junto com ela."

"Mesmo nossa própria dor não é tão pesada como a dor co-sentida com outro, pelo outro, no lugar do outro, multiplicada pela imaginação, prolongada em centenas de ecos"

"Sentiu um peso, mas não era o peso do fardo e sim da insustentável leveza do ser"

"O mito do eterno retorno nos diz por antecipação que nós só vivemos uma vez, e sem repetições, portanto, nunca poderemos comparar uma situação com outra."

"Mas o que pode valer a vida, se o primeiro ensaio da vida, já é a própria vida."

"O amor não se manifesta pelo desejo de fazer amor (pois isso se aplica a todas as mulheres) e sim pelo desejo o sono compartilhado (isso se aplica a uma só mulher)."

"A vida humana acontece só uma vez, e não poderemos jamais verificar qual seria a boa ou a má decisão, porque, em todas as situações, só podemos decidir uma vez. Não nos são dadas uma primeira, segunda, terceira ou quarta chance para que possamos comparar decisões diferentes"

"Mas era justamente o fraco que devia ser forte e partir quando o forte fosse fraco demais para poder ofender o fraco."

"Nunca se poderá determinar com certeza em que medida nosso relacionamento com o outro é o resultado de nossos sentimentos, de nosso amor, de nosso não-amor, de nossa complacência, ou de nosso ódio, e em que medida ele é determinado de saída pelas relações de força entre os indivíduos. A verdadeira bondade do homem só pode se manifestar com toda a pureza, com toda a liberdade, em relação àqueles que não representam nenhuma força. O verdadeiro teste moral da humanidade ( o mais radical, num nível tão profundo que escapa a nosso olhar) são as relações com aqueles que estão à nossa mercê: os animais. É aí que se produz o maior desvio do homem, derrota fundamental da qual decorrem todas as outras."

"O sono compartilhado é o corpo de delito do amor."

"Eu a desejava como se desejam todas as coisas perdidas para sempre."

Amantes

Rubem Alves
Escultura: Apolo e Dafne, Bernini

Continuo minha meditação sobre o amor, sem preocupar-me com a ordem lógica às idéias. O inconsciente desconhece linhas retas. Ele dança. Escreverei as idéias na ordem em que me chegarem.
Transcrevo um poema de Fernando Pessoa. O eixo desse poema é a palavra "Outra" que vai se repetindo. "Outra" não se refere à outra, a amante proibida. Refere-se à "Outra" que mora na imagem da pessoa amada a quem dou as mãos. Amo a minha amada porque vejo nos seus olhos essa "Outra". Vocês, mulheres, troquem o "Outra" por "Outro"... Não me culpem. É o Fernando Pessoa que escreve.
A primeira linha enuncia o moto: "Amamos sempre no que temos o que não temos quando amamos". Tenho a minha amada num abraço. Mas o que amo não é a mulher que tenho nos meus braços. É aquilo que não tenho ao abraçá-la. Essa é a dor do amor. Eliot orava: "Livra-me da dor do amor não satisfeito e da dor muito maior do amor satisfeito". O amor não satisfeito dói na esperança de que, se satisfeito, parará de doer. Mas o amor satisfeito dói por sentir que a dor continua a doer. O amor não pode ser satisfeito. Não há ninguém que seja do tamanho do nosso amor.
O poema segue: "O barco pára, largo os remos e, um a outro, as mãos nos damos. A quem dou as mãos? À Outra. Teus beijos são de mel de boca, são os que sempre pensei dar, e agora a minha boca toca a boca que eu sonhei beijar. De quem é a boca? Da Outra. Os remos já caíram na água, o barco faz o que a água quer. Meus braços vingam minha mágoa no abraço que enfim podem ter. Quem abraço? A Outra. Bem sei, és bela, és quem desejei... Não deixe a vida que eu deseje mais que o que pode ser teu beijo e poder ser eu que te beije. Beijo e em quem penso? Na Outra. (...) Ah, talvez mortos ambos nós, num outro rio sem lugar em outro barco outra vez sós possamos nós recomeçar que talvez sejam a Outra. Mas não, nem onde essa paisagem é sob eterna luz eterna te acharei mais que alguém na viagem que amei com ansiedade terba por ser parecida com a Outra. Ah, por ora, idos remo e rumo, dá-me as mãos, a boca, o teu ser. Façamos desta hora um resumo do que não poderemos ter. Nesta hora, a única, sê a Outra."
Quem é essa "Outra" ou "Outro" que mora em ti e por cuja causa eu te amo? Num outro poema ele responde: "Ninguém a outro ama, senão ama o que de si há nele, ou é suposto."
Será esse o segredo do mito de Narciso? Estamos todos apaixonados por nossa própria imagem refletida no outro? Os olhos do outro, a música da sua fala, os seus gestos, pintam a imagem que desejo ser. Já o espelho e a fotografia me mostram como sou.
Fernando Pessoa relata a sua experiência com uma foto: todos os companheiros de escritório juntos, sorridentes. Ele, insignificante. Mas os companheiros lhe diziam: "Como estás bem, ó Fernando..." O espelho e as fotografias mostram a nossa insignificância. Mas os olhos da amada que sorriem ao me ver me dizem: "Como és belo..."
Milan Kundera, no seu livro A insustentável leveza do ser, medita sobre o mistério do amor entre Tomas e Tereza. "Tereza sabe que é mais ou menos assim o instante em que nasce o amor: a mulher não resiste à voz que chama sua alma amedrontada; o homem não resiste à mulher cuja alma se torna atenta à sua voz".
"Parece que existe no cérebro uma zona específica, que poderíamos chamar de memória poética, que registra o que nos encantou, o que nos comoveu, o que dá beleza à nossa vida. Desde que Tomas conhecera Tereza nenhuma outra mulher tinha o direito de deixar a marca, por efêmera que fosse, nessa zona do cérebro."
"As metáforas são perigosas. O amor começa por uma metáfora. Ou melhor: o amor começa no momento em que uma mulher se inscreve com uma palavra em nossa memória poética". Tomas amava Tereza porque ela lhe viera doente, sozinha, febril. Enquanto cuidava dela veio-lhe a imaginação uma criança indefesa, que vinha a ele numa cesta de vime nas águas de um rio, como aconteceu a Moisés.
Cassiano Ricardo colocou sua meditação sobre o amor num poema terrível, inspirado talvez na pergunta de Agostinho: "O que amo quando te amo?" "Por que tenho saudade de você, no retrato, anda que o mais recente? E por que um simples retrato, mais que você, me comove, se você mesma está presente?"
O resto do poema é uma tentativa de dar uma resposta a essa pergunta. Mas a resposta é simples: o retrato, imóvel, sem respiração, é o lugar onde posso colocar a imagem daquela que amo e que mora em você mas não é você. Se não é você, é quem? Sou eu: "Ninguém a outro ama, senão ama o que de si há nele, ou é suposto..." Procuro-me na pessoa amada. Todos estamos à procura dos pedaços que nos foram arrancados.
No romance Quando Nietzsche chorou ( maravilhoso!) Breuer pede a Nietzsche que o analise, em razão de uma paixão absurda: ele, quarentão, médico de reputação, casado, estava apaixonado por uma jovem histérica, Anna O., que se encontrava internada na sua clínica. A única pergunta que Nietzsche fazia ao apaixonado era: "Qual é o sentido? Qual é o sentido?" Traduzindo em nossa linguagem: "Qual é o nome do peixe encantado que nada nessa fonte chamada Anna O.?" Seria o seu sorriso de criança? Sua fragilidade? Sua dependência total? Faço a mesma pergunta a você: "Qual é o sentido?"
Roland Barthes perdeu a mãe. Ficou só. Na solidão empreendeu uma pesquisa: ajuntou todas as fotografias da sua mãe e foi, vagarosamente, uma a uma, procurando a imagem que ele amava. Porque não é em qualquer foto que a imagem aparece. Pois Barthes foi de fotografia em fotografia, todas de sua mãe, sem encontrar a imagem que ele procurava, até que a encontrou: uma velha fotografia de sua mãe criança! Era essa a imagem que ele amava: a criança que morava na sua mãe velhinha.
Mas, ditas todas essas coisas inúteis para os apaixonados, permanece a verdade do poema da Adélia Prado: "O amor é a coisa mais alegre. O amor é a coisa mais triste. O amor é a coisa que eu mais quero..."

ELA VAI ENVELHECER

Fabrício Carpinejar

Ela vai envelhecer para o carteiro, que passa por ela às 11h, com sua sacola azul e seu escapulário sobre a camisa amarela. Ela vai envelhecer para os colegas do Ensino Fundamental. Ela vai envelhecer para suas amigas do Inglês. Ela vai envelhecer para seus vizinhos, que disputam orquídeas nas varandas. Ela vai envelhecer para seus amigos de infância, que somente conhece pelos apelidos. Ela vai envelhecer para seus animais de estimação, mortos e vivos, lembrados ou esquecidos. Ela vai envelhecer para a floreira da esquina. Ela vai envelhecer para a menina da janela que espera a mãe voltar do almoço. Ela vai envelhecer para seus filhos, que comentarão com piedade entre si que ela já não é a mesma. Ela vai envelhecer para seus alunos, que ainda dirão que está conservada. Ela vai envelhecer para as balconistas do mercado, do banco, das lojas, que não se incomodarão em verificar o saldo. Ela vai envelhecer mudando de roupa, conferindo o batom no espelho, alisando o quadril pelos bolsos de trás. Ela vai envelhecer a cada gripe mal curada, a cada choro engasgado. Ela vai envelhecer ao estender suas toalhas. Ela vai envelhecer ao aproximar incrivelmente os olhos dos livros. Ela vai envelhecer em sua melhor risada. Ela vai envelhecer ao renovar a carteira de identidade. Ela vai envelhecer ao cobrir as rasuras da geladeira com imãs, as falhas das mesas com fotos. Ela vai envelhecer para seus irmãos que moram longe. Ela vai envelhecer quando alguém abraçá-la na rua: “não acredito que é você”. Ela vai envelhecer na primeira reforma da casa, mais ainda ao migrar de casa. Ela vai envelhecer ao desistir da calça de cintura baixa. Ela vai envelhecer para seu analista. Ela vai envelhecer para seus colegas de trabalho. Ela vai envelhecer para os garçons, para os mendigos, para os vendedores de jornais na sinaleira. Ela vai envelhecer, por mais que seu rosto não se apresse no bom-dia ou suas pernas cancelem o boa-noite. Ela vai envelhecer descendo as escadas. Ela vai envelhecer ao sair do cinema. Ela vai envelhecer quando não for compreendida, continuará envelhecendo ao ser entendida. Ela vai envelhecer tomando banho de sol, de mar, de vento. Ela vai envelhecer ao perder a contagem dos números romanos. Ela vai envelhecer com as veias saltando, com a pele de vidro. Ela vai envelhecer ao trocar as sardas pelas manchas. Ela vai envelhecer ao suspirar mais do que o chá. Ela vai envelhecer com sapatos usados uma única vez. Ela vai envelhecer com vales de números quebrados. Ela vai envelhecer ao recuperar sua boca no buquê do vinho. Ela vai envelhecer ao não dar conta do serviço. Ela vai envelhecer pela cervical. Ela vai envelhecer ao escorregar os pés para o fundo das poltronas do avião e do ônibus. Ela vai envelhecer ao deixar cair o guardanapo de pano. Ela vai envelhecer ao escutar a música favorita de sua adolescência. Ela vai envelhecer ao tingir seus cabelos brancos. Ela vai envelhecer ao sentir a urgência do casaco dentro da cama. Ela vai envelhecer como um pião envelhece na corda, como uma colcha envelhece em seus retalhos, como uma criança envelhece ao aprender a escrever. Ela vai envelhecer para os outros. Todos os outros. Eu é que não saberei de nada disso envelhecendo com ela.

Eu aqui me despeço

Pablo Neruda
Eu me despeço.
Volto à minha casa, em meus sonhos.
Volto à Patagônia, aonde o vento golpeia os estábulos e salpica de frescor o Oceano.
Sou nada mais que um poeta: amo a todos, ando errante pelo mundo que amo.
Em minha pátria, prende-se mineiros e os soldados mandam mais que os juízes.
Entretanto, amo até mesmo as raízes de meu pequeno país frio.
Se tivesse que morrer mil vezes, ali quero morrer.
Se tivesse que nascer mil vezes, ali quero nascer.
Perto da araucária selvagem, do vendaval que vem do sul,
das campanas recém compradas.
Que ninguém pense em mim.
Pensemos em toda a terra, golpeando com amor a mesa.
Não quero que volte o sangue... a molhar o pão, os feijões, a música:
quero que venha comigo o mineiro, a criança, o advogado, o marinheiro,
o fabricante de bonecas.
Que entremos no cinema e bebamos o vinho mais tinto.
Eu não vim para resolver nada.
Vim aqui para cantar e quero que cantes comigo.

Confissão

Bucowski
Escultura “O beijo” (1887), Rodin

esperando pela morte como um gato que vai pular na cama
sinto muita pena de minha mulher
ela vai ver este corpo rijo e branco
vai sacudi-lo e talvez sacudi-lo de novo:
e Henry não vai responder.
não é minha morte que me preocupa,
é minha mulher
deixada sozinha com este monte de coisa nenhuma.
no entanto eu quero que ela saiba que dormir todas as noites a seu lado
e mesmo as discussões mais banais eram coisas realmente esplêndidas
e as palavras difíceis que sempre tive medo de dizer podem agora ser ditas:

EU TE AMO.

terça-feira

O desamador

Fabrício Carpinejar “(...) Tenho, sim, piedade daqueles que empregam o amor como forma de tirania.
Que falam em vão do amor como se fosse fácil encontrá-lo.
Que não exercitam a delicadeza, a retribuição e o cuidado atento, e gritam com quem quer apenas sussurrar. Armam-se de autoritarismo, de vassalagem, de discórdia. Não aceitam o contraponto, a discordância. Para assegurar o domínio, rebaixam seu par para que ele fique dependente, menor, indefeso (não forte, confiante ou otimista, como deveria ocorrer e acarretaria independência).
(...)Que acreditam que o parceiro ou parceira não tem escolha e que ficará se sujeitando aos seus terrores e dissabores.
Da figura do desamado, o que sofre solitário, surge o desamador, o que desagrega a solidão e faz sofrer. Porque ele recebe o amor e troça de sua força. Seduz por diversão e hábito, pouco se importando com o envolvimento que se segue.
O desamador dirá depois de usar o amor: “Não prometi nada.” Lavará as luvas para não comprometer as mãos. Omitirá compulsivamente, que é mais repulsivo do que mentir.
O desamador não tem nada a perder, pois não ama.
O desamador chamará qualquer cobrança de neurose, de doença, de loucura. Fará a pessoa se sentir torta, infeliz, incriminada de rancor. Depois ainda contará para os seus amigos e amigas que está sendo perseguido, e apagará o que não combina com a sua versão.
O desamador não fica doente; adoece o mundo.
O desamador não é facultado ao ódio, quem dera! O ódio ainda facilita o amor.
O desamador recorre à intolerância. Chora somente no sufoco, pede desculpas no momento em que é desmascarado, mas não muda, continuará maltratando com a indiferença. Ele não é bom, muito menos ruim; é apático. Seu autoritarismo é a negação da fraqueza. Tudo que acontece de errado em sua vida vai transferir para quem está ao seu lado.
O desamador emprega a crueldade da reticência, do subentendido; não assume as suas escolhas. Induz sua companhia a entender, sem dizer nada.
O desamador gera culpa, dúvidas, incertezas. Não declara sim ou não. Delicia-se com a confusão.
(...)Custo a crer que o desamador nasceu do ventre de uma mulher.”

Pedaços

Paulo Leminski 'A Criação de Adão' é um fresco pintado por Michelangelo por volta de 1511, que figura no teto da Capela Sistina. A cena representa um episódio do Livro do Génesis no qual Deus cria o primeiro homem: Adão.

Parem, eu confesso, sou poeta.
Cada manhã que nasce me nasce uma rosa na face.
Parem, eu confesso, sou poeta.
Só meu amor é meu deus,
eu sou ou seu profeta.

O desamor

Clarice Lispector
(...) Não temos amado, acima de todas as coisas. Não temos aceito o que não se entende porque não queremos passar por tolos. Temos amontoado coisas e seguranças por não nos termos um ao outro. Não temos nenhuma alegria que já não tenha sido catalogada. Temos construído catedrais, e ficado do lado de fora pois as catedrais que nós mesmos construímos, tememos que sejam armadilhas. Não nos temos entregue a nós mesmos, pois isso seria o começo de uma vida larga e nós a tememos. Temos evitado cair de joelhos diante do primeiro de nós que por amor diga: tens medo. Temos organizado associações e clubes sorridentes onde se serve com ou sem soda. Temos procurado nos salvar mas sem usar a palavra salvação para não nos envergonharmos de ser inocentes. Não temos usado a palavra amor para não termos de reconhecer sua contextura de ódio, de amor, de ciúme e de tantos outros contraditórios. Temos mantido em segredo a nossa morte para tornar nossa vida possível. Muitos de nós fazem arte por não saber como é a outra coisa. Temos disfarçado com falso amor a nossa indiferença, sabendo que nossa indiferença é angústia disfarçada. Temos disfarçado com o pequeno medo o grande medo maior e por isso nunca falamos o que realmente importa. Falar no que realmente importa é considerado uma gafe. Não temos adorado por termos a sensata mesquinhez de nos lembrarmos a tempo dos falsos deuses. Não temos sido puros e ingênuos para não rirmos de nós mesmos e para que no fim do dia possamos dizer "pelo menos não fui tolo" e assim não ficarmos perplexos antes de apagar a luz. Temos sorrido em público do que não sorriríamos quando ficássemos sozinhos. Temos chamado de fraqueza a nossa candura. Temo-nos temido um ao outro, acima de tudo. E a tudo isso consideramos a vitória nossa de cada dia. (...)

Frase

Fabrício Carpinejar
Foto: Esqueleto de um homem abraçado ao de uma mulher – tão próximos que as pernas estão entrelaçadas. Trata-se do fóssil do mais antigo casal já localizado em todo o mundo( há cerca de oito mil anos).

"A vida não nos pretende eternos"

domingo

Alguma vez eu te toquei por dentro?

Bianca Alves
Fotografia do Filme: Fale com ela, Pedro Almodóvar, o salto final - o lugar do outro é dentro

Não falo do contato físico, do atrito dos nossos corpos, cansados, acostumados, não falo da tua pele, do teu cheiro depois do sexo, das tuas mãos inquietas, ansiosas, do nosso bale previsível, da nossa intimidade burra e pouco criativa, não falo dos nossos sons, acordes e do teu corpo o melhor instrumento musical que toquei, nem do teu gozo cantado, da tua respiração descompassada e do nosso silêncio depois do grito... Não falo da nossa intimidade diante dos amigos, das nossas mãos públicas e beijos imorais, das nossas cenas e encenações, do teu teatro, do palco que criei pra te assistir... eu ali... na primeira fila... vendo você encenar nossa quase vida, nosso quase futuro, nossa quase relação, nosso quase casamento...

Alguma vez eu te toquei por dentro?

Por meses fiz de você meu templo, minha catedral, minha capela sistina, o castelo perto do meu feudo, a senhora das minhas orações, a rainha das minhas oferendas, minha dança no terreiro, meu jejum de manhã, por meses te reguei, alimentei nosso jardim, te fiz bela, única, te dei morada, sequei teus cabelos, cuidei das tuas feridas... E sei que muitas vezes eu quase te curei... do teu medo(de ser minha, de ser nossa), hoje eu brindo tua fraqueza...enquanto a dor me parte... eu parto sem dar luz a nada...

...

Caio Fernando Abreu


Que coisas são essas que me dizes sem dizer, escondidas atrás do que realmente quer dizer?Tenho me confundido na tentativa de te decifrar, todos os dias.
Mas confuso, perdido, sozinho,

minha única certeza é que de cada vez aumenta ainda mais minha necessidade de ti.

Torna-se desesperada, urgente.
Eu já não sei o que faço. Não sinto nenhuma alegria além de ti.
Como pude cair assim nesse fundo poço?
Quando foi que me desequilibrei?
Não quero me afogar:
Quero beber tua água.
Não te negues, minha sede é clara.

Os emails

Simone Majerkovski Custodio

...Começo pelo começo...juntando. Se começarmos pelo começo ,não estaremos sozinhos. Somos os fragmentos de muitos outros...

Penso...nisso na verdade escorregadia do dia dia..das palavras que faltaram ao encontro,ou seja,somos limitados pela linguagem...E os poemas às vezes fogem ao encontro.Um poema é sempre ou quase- sempre um desencontro que por faltar ao contato lhe tomamos por outro.Outro poema que assim vai sendo traçado...

Penso em nós como um encontro-desencontrado...pois viemos "pesadas" de outros encontros,outros relacionamentos...outros viveres e fazeres.

Penso em nós na sombra de outros...penso em desfazermos amarras para seguirmos livres em horizontes que nos acenam como promissores.

Promissoras buscas que entrelaçam e lançam nossos olhares afetivos em espaços que se abrem, vencidos os encontros antigos,vencidos os viveres passados.Estamos tecendo uma teia de encontros,confissões e cumplicidade...vencendo uma distância que somente nos oportuniza um encontro de voz-virtual,melhor seria de voz e violão.Mas temos nossos icones talvez um CHICO venha nos restituir a glória e minha alma cante ao ver o Rio de Janeiro!!!

Sabemos pouco do nosso porvir do nosso reencontro...sabemos pouco do que nos espera,mas esse momento em nossas mãos...um momento passado,porém constante na lembrança,constante na memória...ele vai estar conosco...talvez em nossa futura já presente caminhada..CAMINHaMOS talvez nos vejamos depois..o encontro permeado de musicalidade ,lucidez e felicidade.Um desejo,um afago entre nós que se perpetua na correria selvagem do tempo.

segunda-feira

ILUMINURA DO BANCO DA PRAÇA

Fabrício Carpinejar
Você não perguntou se eu podia, ou se devia.
Você não me diminuiu para se sentir mais forte.
Você não se escandalizou com a mentira; eu não completei a verdade.
Você não pensou no futuro,
não pesou as conseqüências, não penou antes da hora.
Você não se protegeu do que desconhecia.
Não alertou que sofreria comigo, e que depois não sairia ilesa.
Você não me forçou a adivinhá-la. Não apelou para o bom senso.
Você não me inventou, muito menos queimou o rascunho.
Você não me ameaçou com gentilezas.
Não me incriminou com seus temores, não explicou seus traumas.
Não se fez de vítima como se eu estivesse atacando.
Não, você me carregou nos ombros pela cintura.
Os dois dedos dentro do meu cinto empurrando a dança.
Não me solicitou prova, testemunhas, sinais.
Não emprestou a Deus o que acontecia em segredo.
Você lembrou do sinal-da-cruz longe da igreja.
Não me julgou por antigos amores.
Não me condicionou a amar como estava acostumada.
Não esperou que eu pronunciasse o que vinha escrito em carta.
Você me olhava com os cabelos.
Você não pediu fiança, recompensa, para se entregar.
Você veio com a roupa do corpo, com o corpo ainda sem culpa.
Você me fechou em suas pernas e deixou a porta aberta do quarto.
Você me exilou no desejo para me repatriar aos poucos.
Você esqueceu as janelas chiando na cozinha.
Você foi incapaz de me constranger quando desisti de responder.
Você não me incitou a casar contigo, não me incitou a namorar.
Você não isolou minhas frases, não alegou que era uma fase.
Você me perdoou como se não existisse.
Você me fez existir para que perdurasse.
Você não me reclamou distante, não cobrou que mandasse notícias.
Você desaparecia quando desaparecia e voltava quando voltava.
Você me afirmava quando me confundia.
Você segurava a nudez para que subisse.
Você não me comparou a ninguém, muito menos aquilo que já fui.
Você não me subornou com a infância ou com o medo da morte.
Você não explorou meus segredos para usá-los.
Você não quis que falasse para preencher as falhas.
Você arredondou os defeitos pela pressa de cuidá-los.
Você foi generosa com os meus ouvidos, confiando mais no vento do que na palavra.
Você me permitiu.
Você me entendeu ao não entender.
Você não teve nada a ver comigo - finalmente eu não me repetia.

Retalhos de Frida

Frida Kahlo " Não tenho nada porque não o tenho. Nunca achei que ele fosse tudo para mim e que, separada dele, eu fosse um monte de lixo. (...) Mas agora percebo que não tenho nada além de qualquer outra moça, decepcionada por ser abandonada por seu homem. Não valho nada; não sei fazer nada; não consigo estar sozinha. "


"Perdi meus melhores anos sendo sustentada por um homem, sem fazer nada além do que julgava que o beneficiaria e ajudaria. Nunca pensei em mim mesma e, depois de seis anos, a resposta dele é que a fidelidade é uma virtude burguesa, que só existe para explorar [as pessoas] e para obter lucros econômicos. (...)
Sei que fui tão estúpida quanto se pode ser, mas fui sinceramente estúpida. Imagino, ou pelo menos espero, que me recuperarei pouco a pouco. Vou tentar criar vida nova, colocando minha energia em algo que me ajude a superar isto da maneira mais inteligente. "


"Pensaram que eu era surrealista, mas nunca fui. Nunca pintei sonhos, só pintei minha própria realidade"


"...e a sensação que desde então nunca mais me deixou de que meu corpo concentra em si todas as chagas do mundo". E ainda: "minha pintura carrega em si a mensagem da dor. Creio que ela interessa pelo menos a algumas pessoas".


"Comecei a pintar há doze anos, quando me recuperava de um acidente de automóvel que me manteve na cama por quase um ano. Em todos esses anos, sempre trabalhei com o impulso espontâneo de meus sentimentos. (...) Uma vez que meus temas sempre foram minhas sensações, meus estados de espírito e as reações profundas que a vida tem causado dentro de mim, muitas vezes materializei tudo isso em retratos de mim mesma, que eram a coisa mais real que eu podia fazer para expressar o que sentia a meu respeito e a respeito do que eu tinha dentro de mim." (Carta a Carlos Chávez, 1939)

Cartas: Caio Fernando Abreu

Querida mãe, querido pai,Não sei mais conviver com as pessoas. Tenho medo de uma casa cheia de pais e mães e irmãos e sobrinhos e cunhados e cunhadas. Tenho vivido tão só durante tantos – quase 40 – anos. Devo estar acostumado.Dormir 24 horas foi a maneira mais delicada que encontrei de não perturbar o equilíbrio de vocês – que é muito delicado. E também de não perturbar o meu próprio equilíbrio – que é tão ou mais delicado.Estou me transformando aos poucos num ser humano meio viciado em solidão. E que só sabe escrever. Não sei mais falar, abraçar, dar beijos, dizer coisas aparentemente simples como "eu gosto de você". Gosto de mim. Acho que é o destino dos escritores. E tenho pensado que, mais do que qualquer outra coisa, sou um escritor. Uma pessoa que escreve sobre a vida – como quem olha de uma janela – mas não consegue vivê-la.Amo vocês como quem escreve para uma ficção: sem conseguir dizer nem mostrar isso. O que sobra é o áspero do gesto, a secura da palavra. Por trás disso, há muito amor. Amor louco – todas as pessoas são loucas, inclusive nós; amor encabulado – nós, da fronteira com a Argentina, somos especialmente encabulados. Mas amor de verdade. Perdoem o silêncio, o sono, a rispidez, a solidão. Está ficando tarde, e eu tenho medo de ter desaprendido o jeito. É muito difícil ficar adulto.Amo vocês, seu filho, Caio

Trechos de Clarice

Clarice Lispector, A Legião Estrangeira

"Amor é quando é concedido participar um pouco mais.
Poucos querem o amor,
porque o amor é a grande desilusão de tudo o mais."

Pedaços de Adélia

Adélia Prado, O Coração Disparado
“Aqui é dor,
aqui é amor,
aqui é amor e dor:
onde um homem projeta seu perfil e pergunta atônito:
em que direção se vai?”

Frase

Clarice Lispector
-Só telefonei para lhe dizer que depois de beija-lo
e antes de novamente beija-lo é o momento mais lindo do mundo.
É claro que eu gosto de você.
Nem é preciso perguntar.
Adeus.

domingo

Gostar é tão fácil que ninguém aceita aprender

Arthur da Távola



Talvez seja tão simples, tolo e natural que você nunca tenha parado para pensar:
Aprenda a fazer bonito seu amor. Ou fazer o seu amor ser ou ficar bonito.
Aprenda, apenas, a tão difícil arte de amar bonito.
Gostar é tão fácil que ninguém aceita aprender...
Tenho visto muito amor por aí.
Amores mesmo: bravios, gigantescos, escomunais,profundos, sinceros, cheios de entrega, doação e dádiva.
Mas esbarram na dificuldade de se tornar bonitos.
Apenas isso: bonitos, belos ou embelezados,tratados com carinho, cuidado e atenção.
Amores levados com arte e ternura de mãos jardineiras.
Aí, esses amores que são verdadeiros, eternos e descomunais, de repente se percebem ameaçados e tão somente porque não sabem ser bonitos: cobram, exigem, rotinizam, descuidam, reclamam,deixam de compreender, necessitam mais do que oferecem, precisam mais do que atendem, enchem-se de razões.
Sim, de razões.
Ter razão é o maior perigo no amor.
Quem tem razão sempre se sente no direito (e o tem) de reivindicar, de exigir justiça, equidade, equiparação, sem atinar que o que está sem razão talvez passe por um momento de sua vida no qual não possa ter razão.
Nem queira!!!
Ter razão é um perigo: em geral, enfeia um amor, pois é invocado com justiça, mas na hora errada.
Amar bonito é saber a hora de ter razão. Ponha a mão na consciência. Você tem certeza de que está fazendo o seu amor bonito?
De que está tirando do gesto, da ação, da reação, do olhar, da saudade, da alegria do encontro,da dor do desencontro a maior beleza possível?
Talvez não. cheio ou cheia de razões, você separa do amor apenas aquilo que é exigido por suas partes necessitadas, quando talvez dele devesse pouco esperar, para valorizar melhor tudo de bom que de vez em quando ele pode trazer.
Quem espera mais do que isso sofre e, sofrendo, deixa de amar bonito.
Sofrendo, deixa de ser alegre, igual, irmão, criança.
E sem soltar a criança, nenhum amor é bonito.
Não tema o romantismo.
Derrube as cercas da opinião alheia.
Faça coroas de margaridas e enfeite a cabeça de quem você ama.
Saia cantando e olhe alegre.
Recomenda-se: encabulamentos, ser pego em flagrante gostando, não se cansar de olhar e olhar, não atrapalhar a convivência com teorizações,adiar sempre...se possível com beijos
-'aquela conversa importante que precisamos ter', arquivar, se possível, as reclamações pela pouca atenção recebida.
Para quem ama, toda atenção é sempre pouca.
Quem ama feio não sabe que pouca atenção pode ser toda a atenção possível.
Quem ama bonito não gasta tempo dessa atenção cobrando a que deixou de ter.
Não teorize sobre o amor (deixe isso para nós, pobres escritores que vemos a vida como criança de nariz encostado na vitrine cheia de brinquedos dos nossos sonhos);
Não teorize sobre o amor, ame. Siga o destino dos sentimentos aqui e agora.
Não tenha medo exatamente de tudo o que você teme, como: a sinceridade, abrir o coração, contar a verdade do tamanho do amor que sente; não dar certo e depois vir a sofrer (sofrerá de qualquer jeito). Jogue por alto todas as jogadas, estratagemas, golpes, espertezas, atitudes sabiamente eficazes (não é sábio ser sabido): seja apenas você no auge de sua emoção e carência, exatamente aquele que a vida impede de ser.

Seja você cantando desafinado, todas as manhãs.

Falando besteiras, mas criando sempre.

Gaguejando flores.

Sentindo o coração bater como no tempo de Natal infantil.

Revivendo os caminhos que intuiu em criança.

Sem medo de dizer eu quero, eu estou com vontade.

Deixe o seu amor ser a mais verdadeira expressão de tudo que você é.

Se o amor existe, seu conteúdo já é manifesto.

Não se preocupe mais com ele e suas definições.

Cuide agora da forma.

Cuide da voz. Cuide da fala. Cuide do cuidado. Cuide de você.

Ame-se o suficiente para ser capaz de gostar do amor e só assim poder começar a tentar fazer o outro feliz.

Nunca Foi Tarde - Paulinho Moska



Ando pela rua a te chamar
Mas na verdade, tanto faz
Porque visto as frases que você me deu
Mas elas não me servem mais
O que aconteceu com seu futuro que era o meu?
Agora não adianta mais me responder(nem venha me dizer)
Quem passou do ponto onde era longe
E de que jeito era o certo
Porque minha dor sempre se esconde
Mas nunca sai de perto
O que aconteceu com meu futuro que era o seu?
Eu não vou provar do seu antídoto
Que me salva e me condena a me encontrar perdido
Não preciso de você pra descobrir
Que a estrada infinita que tenho que seguir
Não leva a nada
Começamos o fim...
É assim
O melhor pra você, o melhor pra mim
Eu não voltaria mesmo
E você não podia ter ficado aqui(nunca foi tarde)
E hoje quando amanhece sol
Abro a janela para a chuva
Que coincidência: tua mão
Não cabe mais na minha luva
O que aconteceu com o futuro que morreu?...
Ou nunca existiu?
Você nem olhou pras coisas que admiro
E nem me ouviu
Mas era eu quem te chamava com meu último suspiro
O que aconteceu com o futuro que se perdeu?(nunca foi tarde)

UMA LINDA MULHER

Fabrício Carpinejar Garota de programa está apaixonada por um cliente.
Viajaram romanticamente, almoçaram em família,
mas ambos não legendaram a convivência.
Ela questiona:
"O que falta para que a gente fique junto?
Ou o que está acontecendo?
Estamos nos usando?".

quinta-feira

Rubem Alves

Eternal Idol (1889), Auguste Rodin

A paixão é emoção gratuita.
Não há causas que a expliquem.
Mas, quando acontece, ela age como uma artista: da paixão surgem cenas de beleza.
Os amantes se imaginam andando de mãos dadas por campos floridos;
abraçados numa rede; silenciosos, diante do fogo da lareira; contemplando o rosto de um nenezinho adormecido...
Paisagens de paixão

Pedaços

Caio Fernando Abreu
"Subi correndo no primeiro bonde,
sem esperar que parasse,
sem saber para onde ia.
Meu caminho,
pensei confuso,
meu caminho não cabe nos trilhos de um bonde".

Aquela noite

Bianca Alves
Era pra ser só uma brincadeira...
Uma noite
Pretensões?
Aquelas primitivas e bobas de alimentar o corpo
Sem envolver outros órgãos além do maior, a PELE
Sempre faço confusão com o CORAÇÃO (meu maior órgão involuntário)
...talvez seja por isso que antes da noite acabar...
minhas MÃOS ansiosas já procuravam as suas
Num balé favorável ao amor
Ao novo AMOR
Tinha tanto cuidado
Tanta sede
Tanta vontade de te tocar de outra forma,de te curar,de te dar o meu colo e os meus dias
Que antes do sol bater nas persianas do meu quarto
eu já estava embriagada pelo seu cheiro,
mergulhada nos seus braços, abraços

...

e inquieta com a possibilidade dessa noite não se repetir mais...

quarta-feira

MEU QUERIDO AMOR




Exposição Yoko Ono
Half-A-Room(1967) traz um quarto de casal completamente branco, com a mobília, também branca, cortada ao meio,cadeiras, quadros, bancos,cama... Segundo Ono, a inspiração veio da sensação de "estar pela metade" em um dia que ela acordou e notou que Anthony Cox, seu ex-marido, não estava lá.


Fabrício Carpinejar

Nunca escrevi diretamente para você. Sempre havia uma destinatária em seu lugar. Eu abreviava o caminho, não sei se recebeu alguma notícia minha desde a adolescência ou se as cartas nunca passaram pela poça de seu sopro. Hoje coloquei meu blusão verde bordado 38. O prazer da gola coçando a barba me animou – sou movido ao tato. É dia de inverno, próprio para sentar com uma cadeira dobrável no pátio e expor o rosto à enxaqueca do sol. Não me importa que seja obrigado a tomar uma aspirina depois. Dependo de sua claridade inconsolável. Desculpa, Amor, você não tem nada a ver com o nosso destino. Nós terminamos antes que você termine. É assim. Desistimos enquanto você prossegue. E apenas você, Amor, que irá até o fim, onde deveríamos acompanhá-lo, você vai até a nossa velhice: as mãos concedidas debaixo dos lençóis. Nós ficaremos na meia-idade, os braços pedindo um táxi. Nós o negaremos secretamente, apesar das pontadas violentas e da saudade dolorida. Negaremos inclusive que o conhecemos, que você é nosso encontro. Seus traços serão coincidências, nunca a soma óbvia dos nossos perfis e lápis de cera. Nossas dúvidas escondem você. Porque é necessário confiar naquilo que ainda não sabemos. E queremos saber tudo antes mesmo de ter vivido. Nosso nervosismo não tem tranqüilidade para aceitá-lo. Você tem paciência; nós, tempo. Sei que você não se fez sozinho, não posso escrever em seu lugar, você não é o que confio, é o que confio mais o que confia quem eu amo. E quem eu amo não poderá falar por você igualmente. O amor está entre duas conversas, duas ânsias, dois passados. Não é o desejo da direita, nem o da esquerda. É o que está entre os dois. Flutuando. O amor é se despertencer. É sentir para passar adiante, não é sentir para ficar com aquilo. É não suportar sentir mais sozinho. Eu me desacostumei com a minha solidão. Pela pressa de ter o amor só nosso, só nosso, somos capazes de destruí-lo com palavras. Não temos nada para odiar naquela pessoa. Estávamos agradecidos pelo espanto provocado pela sua chegada. Irreconhecíveis pela felicidade que nos fazia imaginar em dobro. Na noite anterior, éramos a vontade desesperada de entender. No dia seguinte, nenhuma vontade de compreensão. Não há persistência, há precipitação. Mentir para uma pessoa não é tão grave quanto mentir para você, Amor. Mas os casais mentem que você foi um engano, um engodo, uma mentira. Chegam a dizer que você não existiu. Você fica perdido entre as defesas e ataques de ateus, céticos, agnósticos, crentes. Somos fracos e desabafamos o que não acreditamos. Despejamos tanta violência sobre aquele que amamos para provocar. Para desencadear uma reação. Somos cruéis em nome de amor, para não sujar o nosso nome. Somos imundos, desolados, irascíveis. Por não agüentar alguma coisa não resolvida em nossa vida. Algo aberto, inacabado. Uma fresta nas venezianas e não mais dormimos. Desconfio que nossa curiosidade está toda no ódio. Não toleramos ter que esperar. Se ele ou ela não vem agora é que não me deseja mesmo. Concluímos logo. Feitos perfeitamente para a fúria, incomodados com a brisa. Procuramos decidir de vez se aquilo presta ou se não presta, se vale ou se não vale. Ansiamos por um veredicto, uma salvação, uma paz. Penso que desejamos a separação para não sofrer mais. Produzimos a separação, é a resposta mais rápida. A resposta mais rápida é vista como a certa. Um alívio para seguir com o trabalho, e mostrar clareza aos amigos. E os amigos bem-intencionados não vão nos ajudar. O que disserem a respeito do que aconteceu não será suficiente, o amor é um dialeto restrito aos dois que se amam. Não reparamos no principal, Amor. Não reparamos que quando amamos o tempo não faz a mínima diferença. Amar será sempre recente: será ontem. Anos juntos e a sensação é que foi ontem. Anos separados e a sensação é que foi ontem. Ontem, ontem. Não há anteontem no amor. As lembranças mais longínquas já são corpo. É uma pena, Amor, que somos mais decididos do que amorosos. Amar é não decidir. Decidir é terminar sempre. Aguardo seu retorno. Abraço

...

Bianca Alves


Além de livros, cds, retalhos e pedaços de mim
Você também levou minhas lágrimas

Ontem...

Depois de anos...seca...com a alma fazendo eco, tamanha solidão

Eu senti o gosto doce das minhas lágrimas...

salgadas

Agora sim,

Voltei a morar em mim...

Por que você não vem morar comigo?

Chico César



Por que você não vem morar comigo
Alimentar meu cão, meu ego
Cansei de ser assim, colega
Não sei mais ser só seu amigo

Eu quero agora ser seu amado
Você me deixa a perigo
O amor me corta feito adaga
Mas vem você e me afaga
Com afeto tão antigo

Você não leva a sério o que eu digo
E enche a taça que me embriaga
Me prega em cruz feito Jesus de Praga
Mas sempre me defende e compra minhas brigas

Não ligo
Se é amor ou amizade vaga
Dizem que o amor a amizade estraga
E esta a este tira-lhe o vigor

Não ligo
Se é caretice ou romantismo brega
Um dia em mim essa aflição sossega
More comigo e traga seu amor

Adoro o jeito que você me pega
Me chama de meu nego, minha nega
E quando me abraça e eu me entrego
Vem você e diz cuidado com esse apego

Amigos falam que esse mico eu pago
Pois mudo logo quando você chega
E acende a luz mas essa luz me cega
E abre em rosa a pedra que no peito eu trago

Não ligo
Se é amor ou amizade vaga
Dizem que o amor a amizade estraga
E esta a este tira-lhe o vigor

Não ligo
Se é caretice ou romantismo brega
Um dia em mim essa aflição sossega
More comigo e traga seu amor