domingo
PAIXÃO SEGUNDO O ENTENDIMENTO
Caio Fernando Abreu Despido e solitário, organizou o prazer no banheiro, enquanto o mundo não lhe entregava aquela mulher predestinada desde o início dos tempos. Uma sensação de estranheza de seu corpo múltiplo e concentrado em um único ponto rijo de fogo, as mãos atarefadas conduzindo os movimentos. Envolto em vidro numa atmosfera ao mesmo tempo quente e delicada, como as concavidades da mulher ignorada. E de repente assim, já não vendo as próprias coxas onde o líquido tecia desenhos, de repente tendo outra vez oito anos na surpresa de perceber a mente infantil aprisionada num corpo adulto e satisfeito. Antes, o vidro ameaçava ceder a um matagal de veludo, qualquer coisa áspera e intensa: o vidro quebrado e os pesados reposteiros sobre ele, num vôo.A mão suspensa exausta. E só após -a incompreensão da própria carne. O cérebro por segundos esvaziado de pensamentos cedia lugar unicamente ao gesto, o cérebro posto em repouso voltava a funcionar. Não, não eram recriminações: uma perplexidade distraída de não ter controlado o que era seu e, mais além, o medo de não controlando o que era seu não poder controlar jamais o que era alheio. O que seria alheio, corrigiu-se pensando na fêmea que lhe era destinada. Ajustou-se ao que voltara a ser, admitindo que já não conseguia tocar-se: havia-se formado como que uma aura em torno do corpo.Não uma aura de santidade, nem de irradiações, mas de desnecessidade de tocar-se. O corpo tresandava exaustão. Não, já não era preciso tocar-se, e isso não doía. Doía apenas quando o gesto se impunha, e antes do toque, apenas antes. Vigoroso, olhou-se no espelho e sorriu como um animal, sem compreender que o sorriso não era para si próprio, mas para um outro -ainda não suspeitava da possibilidade de encontro de criaturas de mesma força, numa relação diversa da dominante-dominado que esperava. E mesmo que suspeitasse, não admitiria, pois em qualquer parte do mundo havia uma fêmea feita para ele, acreditava. Uma fêmea côncava em que, convexo e sem espanto, se acomodaria. Não, não suspeitava que asperezas e saliências pudessem se encontrar em violência e fogo, num círculo intenso, oculto. Admirou-se, a masculinidade expressa no olhar arrogante substituindo o instrumento exausto. A luz coada da tarde impunha um reflexo fantasmagórico no liso da pele e, sem entender, admitiu.Por um momento, uma suspeita o fez oscilar precário: que estava se passando? A mão deslizou mansa na pele, num toque novamente além da aura, mas diferente, apenas isso, diferente. Nem mais nem menos profundo. Então, como no começo do mundo, começou a se fazer a luz. Atravessou seis dias anexando a si o claro e o escuro e o sim e o não e o amor e a guerra e as pestes e os sorrisos e as mãos dadas e os plátanos perdendo as folhas e novamente recuperando e os desertos e as planícies e os oásis e as chuvas e os ventos e as praças e as grandes extensões de nada e as galáxias e cada um dos grãos de areia do fundo dos oceanos e os animais e as pedra e o acúmulo de pedras formando templos e as estradas e as portas e as varandas e as ondas e as cidades de ferro e metal e organdi e o silêncio todos os silêncios e os gritos e os muros e os porões e as chaves. Mas no sétimo dia, no sétimo dia tremeu e hesitou, imediatamente cobrindo-se com toalha, expulso do que descobrira e que, por inexperiência de lidar com as coisas, poderia transmutar-se de paraíso em inferno. Não houve tempo de escolher nem paraíso nem inferno: preferia a segurança de um gesto...De hoje em diante comerás o fruto de teu próprio suor- ainda ouviu, sim, sim: era preciso dar sangue e pão e carne a um evento para que não morresse. Era preciso sentir nos ombros as garras do que inventara. Então vestiu-se demorado, reconstruindo aos poucos o que não sabia se se ampliara ou fora destruí do, reassumindo-se no que era simplesmente, a sua demarcação com fronteiras e limites, obscuras negações. A firmeza e o conhecimento do que constituía seu próprio terreno, e que fechava a qualquer tentativa de modificações. Jamais teria sido guerreiro ou explorador de novas coisas ou um descobridor ou um cientista ou um astronauta: seu heroísmo residia na defesa, não no ataque. O máximo que pediria a Deus, se acreditasse nele -e acreditava- seria não permitir jamais que saísse de si próprio, nem avançasse além do que, descuidado, já avançara. Pois que, avançando, era obrigado a anexar o que descobrira, e não tinha forças nem vontade de reformular todos os dias o seu ser de cada dia. E olhando fora de si, pressentia avisos, seculares avisos de sangue de que o que o esperava não tardaria. A isso chamava, amável, de uma esperança. Em nenhum momento permitiria a si mesmo duvidar da concretização das esperanças, do que chamava esperanças.Sim, sim, confirmou olhando-se no espelho, quase vestido. A mulher havia colocado a mão no seu ombro, dizendo: eu sou bonita. Mas ele fora além e respondera: eu sou. O prazer que sentia era quase o mesmo de quando jogava tênis e conseguia interceptar uma bola impossível para marcar pontos. Apenas, o esforço dos músculos doía depois. Uma dor imprecisa, ao mesmo tempo generalizada e concentrada, num ponto inatingível. Sim, repetiu uma outra vez, e já não doía, nada mais doía. Pensou numa fórmula matemática -ele era engenheiro -a mãe esperando para jantar -ele era órfão de pai -nos talheres de prata -ele era rico: conseguindo situar-se. Sim, sim, delimitar-se, sim, sabia o que era, quem era, sim. Aparou cuidadoso o bigode e, recomposto, desceu triunfante as escadarias de mogno envernizado.
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""Erótica é a alma""
Adélia Prado