sexta-feira

ANALFABETISMO EMOCIONAL

Fabrício Carpinejar
Os erros são meus.

Entre o tremor e o desenho, fazia cartas para namorada. Redigia várias vezes para eliminar o maior número de garatujas. Passava todo amor a limpo. Eu já memorizava as declarações pela excessiva luta contra a minha letra. Eu comecei a escrever poemas em máquina de escrever. Catava milho com violência. Minhas unhas eram bicos de galos. Não ficaram cultas com o tempo, mas afiadas. Debruçado, escavava os quilos de ferro. Tinha que ser rápido porque meu pai desfrutava de exclusividade e podia entrar no escritório. Saía sujo, engraxado, pelo hábito de mexer e trocar as fitas. Eu dependia mais da inspiração da máquina do que da minha. Ainda recordo o barulho infinitamente delicioso de ajeitar o papel em suas roldanas. Empurrar a folha e vê-la escorrer ao outro lado. Se descesse torta, amassava bruscamente, sem chance de reutilização. Tarefa que ficava mais nervosa com o papel carbono, para produzir cópias, sempre borradas e com letras vazadas. Por fora, máquina de escrever era como dirigir um carro, com marchas para descer os parágrafos. Por dentro, lembrava parte decapitada de um instrumento, algo como o joelho do piano. Amaldiçoava as teclas que enguiçavam. Usava líquido corretivo, espécie de água benta da tinta. A cada falha, obrigado a reencontrar a linha exata para substituir a palavra. Não havia corretor ortográfico ou word para apontar meus equívocos e ignorâncias. Vivia uma cultura portátil. Aquilo que falava significava aquilo que escrevia. Não havia como mentir e dissimular. Até o cheque cobrava o acerto, senão era devolvido por falta de fundo na gramática. O que eu sabia, sabia. O que não conhecia, vinha a aprender em seguida para não sofrer novos constrangimentos. Acentuação, concordância, a leveza dos períodos dependiam de mim. Colocava os erros em minha conta. Individuais, lavrados em cartório. Hoje ninguém mais quer assumir as falhas. Na escola, na universidade, na entrega de currículos. Ninguém tropeça mais. Uma insana onisciência pretende esconder os fracassos do idioma. Ocultar as imperfeições. Parece que só eu apanho da língua portuguesa. Parece que só eu mendigo caridade na folha de rosto. A regra é - diante de uma troca de letra e um acento infiel - justificar: - Desculpe, são erros de digitação. Antigamente as desculpas costumavam ser a pressa e a falta de tempo. A deficiência recebeu um novo nome: computador. O sobrenome disso é soberba. Cançaço tornou-se erro de digitação. Mau da língua. Estraordinário corresponde também a um erro de digitação. É extraordinário mesmo. Por que não consultar o dicionário ou perguntar? Não, são erros de digitação. Comem-se as letras antes da leitura. Logo traições na política serão erros de digitação, infidelidades amorosas serão erros de digitação, omissões com os filhos e amigos serão erros de digitação. O erro de digitação é o bode espiatório. O mundo finalmente está nas mãos dos sábios.

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""Erótica é a alma""

Adélia Prado