terça-feira

DIÁRIO DE UM APAIXONADO III


Fabrício Carpinejar

O apaixonado não consegue decidir nada.
Recebe um cardápio e faz de conta que é uma televisão.
Tudo está bom, tudo ele aprecia.
Pode atravessar a pé uma cidade sem se importar com o cansaço ou dar voltas no mesmo bairro de carro e ainda elogiar as ruas.
Ri mais do que fala.
Aliás, o apaixonado emprega a risada para dizer sim.
O garçom reconhece o apaixonado pelo braço ansioso de náufrago.
O apaixonado se preocupa com a roupa de baixo.
A mulher não usará time misto.
Qualquer momento pode ser derradeiro.
Quando está nervoso,
o apaixonado segura as mãos da companhia para ganhar tempo com o tato.
O apaixonado gosta de saber se a pessoa está sentindo o mesmo do que ele,
mas precisa ser igualzinho.
Fica horas no telefone acarreando os sintomas com o par.
Descreve os efeitos da paixão em seu corpo com minúcias de uma doença a um médico.
Acorda toda manhã de ressaca de algo que não bebeu.
Como se sua vida fosse emprestada.
O apaixonado é o último a acreditar que está apaixonado.
Muda de idéia com facilidade.
Fica seguro para se mostrar desesperado em seguida.
Dois minutos é muito tempo para um apaixonado.
O apaixonado não respeita sinais de trânsito.
Dentro de si, um engarrafamento interminável.
Passa o dia inteiro entre a primeira e a segunda marcha,
entre a primeira e a segunda pessoa do singular.
Joga xadrez com a música.
Caminha envaidecido com marcas no corpo.
Alisa as unhadas como esboços de uma tatuagem.
O apaixonado desaparece do trabalho de repente,
de modo discreto.
E reaparece espalhafatoso.
O celular do apaixonado está fora da área de cobertura ou desligado.
O apaixonado é um guia completo dos bares da cidade.
Esquece dos amigos e só volta a falar com eles depois da primeira crise.
É possível montar um retrato falado do apaixonado a partir das pessoas que freqüentam rodoviárias e aeroportos.
Ele está sempre partindo com as vestes do corpo.
O apaixonado perde bem mais do que a cabeça.
O apaixonado não aprendeu a mentir.
Sua sorte: mente tão mal que se assemelha a uma verdade.

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Adélia Prado