sexta-feira

No mesmo lugar

Fabrício Carpinejar


Continuo no mesmo endereço. Continuo com os olhos caídos. Continuo com a respiração cortada por suspiros. Continuo tomando uísque em copo baixo com duas pedras de gelo. Continuo indo na fruteira às 9h. Continuo mexendo minhas pernas debaixo da mesa. Continuo levando meu filho para escola. Continuo na mesma rua. Continuo com quatro pares de sapatos. Continuo lendo três livros ao mesmo tempo. Continuo no mesmo bairro. Continuo com a caneta no bolso esquerdo. Continuo escolhendo os caminhos mais longos. Continuo contando relâmpagos. Continuo sentando na mala antes de fechar. Continuo medindo a estrada com os cadarços soltos. Continuo tendo mais projetos do que fama. Continuo com o mesmo CPF. Continuo planejando viagens. Continuo jogando na Sena. Continuo apequenando as coisas como quem viaja na janela do avião. Continuo sofrendo com antecedência. Continuo com esperança. Continuo apaixonado por antiquário. Continuo jogando paciência com o ventilador. Continuo entendendo você. Amar é se fazer entender. Não vou dificultar as coisas, continuo escutando você. Continuo permitindo você falar. Continuo cedendo o assento para idosos. Continuo com o mesmo CEP. Continuo com a mala de couro marrom, a pequena agenda e uma pasta de escritos. Continuo bebendo café forte, sem açúcar. Continuo fulminado de compaixão por vira-latas. Continuo a atravessar sinal fechado de madrugada. Continuo a receber multas. Continuo a cantar no carro. Continuo sem achar meus óculos de sol. Continuo dormindo nu. Continuo escolhendo as últimas poltronas do ônibus. Continuo escondido nas fileiras do meio do cinema. Continuo vidrado naquilo que ficou a dizer. Continuo chegando atrasado ao teatro. Continuo a tocar minha orelha como se faltasse seu brinco. Continuo a ressecar minha boca. Continuo a observar as vitrines de roupas femininas. Continuo conversando com os garçons. Continuo a ajeitar os cabelos na concha dos ouvidos. Continuo a barganhar descontos. Continuo a odiar a água parada debaixo do sabonete. Continuo a ser puxado pelo vento. Continuo a caçar disco voadores entre as estrelas. Continuo provocando. Continuo com o mesmo cartão de crédito. Continuo no mesmo emprego. Continuo sem dinheiro. Continuo a guardar os recortes dos shows que não irei. Continuo desistindo de você para voltar em seguida. Continuo com o desvio de septo. Continuo em fossa. Continuo cavando fosso nas gavetas. Continuo a procurar sinais. Continuo a fugir das fotos. Continuo aguardando as férias. Continuo trabalhando de tarde. Continuo mordendo os travesseiros. Continuo com pintas no braço. Continuo escrevendo livros. Continuo freqüentando o balcão para solteiros dos bares. Continuo a atravessar a praça. Continuo a esquecer de entregar os filmes na locadora. Continuo com o mesmo telefone. Continuo cortando as unhas depois de roê-las. Continuo fumando. Continuo com a etiqueta do lado de fora das camisas. Continuo usando a carteira na calça jeans. Continuo saindo com meias trocadas. Continuo fracassando nas promessas. Continuo imobilizado. Deixo tudo no mesmo lugar para facilitar que volte ou venha a me encontrar. Não existe como andar de mãos dadas se partirmos em direções contrárias.

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""Erótica é a alma""

Adélia Prado