segunda-feira

O futuro da paixão

Maitê Proença




Era o fim de uma história de amor, dentro de mim correntes de ferro a se arrastar. Neste estado encontro uma grande dama das artes cênicas e, num ímpeto, derramo sobre ela a minha tormenta. Depois de tudo escutar, e como forma de consolo, a diva, do alto de seus oitenta anos, me diz: 

- Também estou apaixonada. Só que ele não sabe. Nem precisa saber. A paixão me faz ir para o teatro todos os dias e vibrar. Eu coloco essa coisa vigorosa no trabalho, e assim, experimento o amor, transformando-o naquilo que sei fazer de melhor. 
Falou mais bonito do que isso, mas passados alguns anos, o que ficou daquele momento de sabedoria compartilhada, foi a ideia da paixão como propulsora dos nossos talentos, como viabilizadora de delírios, e como força motriz para aquilo que precisa ser feito, mas não acontece, porque ela desperta movimentos estagnados dentro da gente. Uma paixão sem dono a serviço do mistério, nos dá ânimo para fazer deslanchar qualquer impulso, é a dor que se cura ao se deslocar do amor - basta misturá-la com um bocado de coragem e se lançar à vida, e à criação. 
No momento atual, que para mim é de virada, a receita se ajusta trazendo alento a um processo incômodo, mas necessário. Hábitos e trejeitos que foram naturais até bem pouco, precisam ser substituídos por outra forma de agir inexplorada. Dia desses assisti a uma atriz francesa, cinquentona, digna e bela, sendo entrevistada por um senhor bem apessoado. Ela falava inteligências, soltava tiradas que exibiam sua perceptividade aguda, tudo parecia sensível e surpreendente. Contudo, havia algo ali que não ia bem, e pelas tantas percebi um tom coquete de sedução barata a macular a dignidade do quadro. Muxoxos e gestos forçados surgiam vez por outra nas entrelinhas dos pensamentos, e para minha decepção, o encanto daquela mulher extraordinária foi se desmanchando lenta, mas inexoravelmente à minha frente. Era constrangedora a necessidade de seduzir com armas inferiores aos atributos de sua beleza madura. Era vulgar vê-la lançando mão de algo aquém de si mesma. E era triste perceber que a sofisticada criatura levava o mecanismo tão entranhado em si, que não se dava conta da banalidade a que se prestava. A afetação, os cabelos pra cá e pra lá, certos maneirismos afins, são graciosos em uma moça de vinte cinco, mas mostram-se intoleráveis em uma senhora de cinquenta (por mais bela que se mantenha). Aos vinte, aos trinta vivemos questões que atravancam nosso desenvolvimento, e que, envergonhados, tentamos mascarar para lidarmos com eles na surdina: são nós, inseguranças, medos e outras chatices que assolam a todos, inibindo alguns mais do que outros. Com os anos, muito disso vai se dissolvendo, e para quem tem densidade, sem os percalços a imobilizar, certa consistência passa a transparecer nos diversos aspectos da vida: no trabalho, amor, nas conversas, na amizade, em cada empreitada. É isso o que torna interessante uma mulher madura, uma pessoa madura. Já não é viço do rosto ou o corpo bem feito, mas algo que vibra dentro numa postura segura e vigorosa. Essa beleza tem a vantagem de ser perene, e para que perdure robusta, há que se encharcá-la sempre que possível, de entusiasmo ou paixão, seu sinônimo. Tendo fraturado 21 ossos ao longo da vida em função de um excesso de entusiasmo voltado a qualquer aventura que se apresentasse, decidi, a fim de preservar o esqueleto aquebrantado, investir em novos amores que me instiguem tanto quanto, mas que não mais me desintegrem. Doravante, além do ofício escolhido, investigarei a fundo as artes plásticas contemporâneas, estudarei o entre-guerras com afinco, incursionarei pela música de Mahler de forma metódica, lerei concentrada os livros da estante, dedicarei horas preciosas aos amigos diletos. Entregue a novas paixões lanço frentes de prazer para um futuro, que, benza deus, se apresenta cada dia mais sedutor. 

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""Erótica é a alma""

Adélia Prado