sábado

Retalhos

Bianca Alves



Fila do cinema, no cartaz dois idosos, poucos entram na sala de projeção, afinal, qual é a graça de assistir dois velhos no fim da vida, no fim da linha, quando o amor parece cansado demais e a pele registra em zoom a passagem do tempo, do outro, tudo é tão profundo, fundo, o amor , o amor mesmo demora, mora nos silêncios dos cantos, nas rusgas, rugas, no álbum de fotografia, o amor dança, em cadeiras de roda, em passos lentos e encontros desequilibrados, o amor se adapta, hoje, sorri, amanhã, chora.
O piano agora anda calado, a cama com tantas histórias contadas pela pele, agora é compartilhada pela dor, o amor depois de anos e anos, se estranha, se desconhece,envelhece, e o que fazer quando corpo não consegue mais falar? (O amor) se adapta e vive inteiro com o que tem, vive pleno com o que tem, não é que o amor seja cego diante das mudanças, mas ele consegue amar tudo que se revela no outro, as rugas, o novo peso, a calvície, as limitações do novo corpo, a flacidez da pele, é tudo nova ferramenta do amor, nunca acordamos com a mesma pessoa, o amor sabe disso, logo, o estranhamento passa e estamos diante da pessoa que amamos a vida toda, e ela continua linda,intacta.
O amor é da dinâmica dos dias, o amor é da dinâmica das horas, o amor é gentil, se alimenta de coisinhas pequenas, de pequenos grandes cuidados, de livros a espera do outro, é preciso que o outro conheça o que o encantou, a beleza e a tristeza precisam ser compartilhadas, assim como o ovo quente de manhã, o recital de piano, os casacos no armário e as palavras que curam e cuidam do amor, ‘obrigada’, ‘obrigado’.  
Vendo o filme, lembrei-me de Anais Anin, “O amor nunca morre de morte natural.”, lembrei de vários trechos de poesias, músicas,filmes(Morangos silvestres) lembrei de Gabo(e a cólera), e das despedidas forçadas, dos nossos suicídios amorosos, de quantas vezes matamos o amor. Talvez você que passa os olhos aqui agora, não entenda, só são retalhos, retalhos de amor, eu só tenho retalhos, entendi que é preciso ter uma vida inteira, uma dinâmica, uma rotina dolorosa, saborosa, pra se falar, pra entender o amor, é preciso envelhecer nele, é preciso acordar com a mesma pessoa, durante anos, é preciso ter um álbum com fotos de todos os tempos, de agora em diante. 
Só são retalhos de uma experiência que eu não tenho, é preciso ser corajoso, sábio, pra envelhecer com alguém, pra morrer de amor é preciso viver de amor. Só a história de dois idosos poderia falar do amor de uma forma  tão plural, integral, o resto...são retalhos de planos futuros. 

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