domingo

Amantes

Rubem Alves

Continuo minha meditação sobre o amor, sem preocupar-me com a ordem lógica às idéias. O inconsciente desconhece linhas retas. Ele dança. Escreverei as idéias na ordem em que me chegarem.

Transcrevo um poema de Fernando Pessoa. O eixo desse poema é a palavra “Outra” que vai se repetindo. “Outra” não se refere à outra, a amante proibida. Refere-se à “Outra” que mora na imagem da pessoa amada a quem dou as mãos. Amo a minha amada porque vejo nos seus olhos essa “Outra”. Vocês, mulheres, troquem o “Outra” por “Outro”… Não me culpem. É o Fernando Pessoa que escreve.

A primeira linha enuncia o moto: “Amamos sempre no que temos o que não temos quando amamos”. Tenho a minha amada num abraço. Mas o que amo não é a mulher que tenho nos meus braços. É aquilo que não tenho ao abraçá-la. Essa é a dor do amor. Eliot orava: “Livra-me da dor do amor não satisfeito e da dor muito maior do amor satisfeito”. O amor não satisfeito dói na esperança de que, se satisfeito, parará de doer. Mas o amor satisfeito dói por sentir que a dor continua a doer. O amor não pode ser satisfeito. Não há ninguém que seja do tamanho do nosso amor.

O poema segue: “O barco pára, largo os remos e, um a outro, as mãos nos damos. A quem dou as mãos? À Outra. Teus beijos são de mel de boca, são os que sempre pensei dar, e agora a minha boca toca a boca que eu sonhei beijar. De quem é a boca? Da Outra. Os remos já caíram na água, o barco faz o que a água quer. Meus braços vingam minha mágoa no abraço que enfim podem ter. Quem abraço? A Outra. Bem sei, és bela, és quem desejei… Não deixe a vida que eu deseje mais que o que pode ser teu beijo e poder ser eu que te beije. Beijo e em quem penso? Na Outra. (…) Ah, talvez mortos ambos nós, num outro rio sem lugar em outro barco outra vez sós possamos nós recomeçar que talvez sejam a Outra. Mas não, nem onde essa paisagem é sob eterna luz eterna te acharei mais que alguém na viagem que amei com ansiedade terba por ser parecida com a Outra. Ah, por ora, idos remo e rumo, dá-me as mãos, a boca, o teu ser. Façamos desta hora um resumo do que não poderemos ter. Nesta hora, a única, sê a Outra.”

Quem é essa “Outra” ou “Outro” que mora em ti e por cuja causa eu te amo? Num outro poema ele responde: “Ninguém a outro ama, senão ama o que de si há nele, ou é suposto.”

Será esse o segredo do mito de Narciso? Estamos todos apaixonados por nossa própria imagem refletida no outro? Os olhos do outro, a música da sua fala, os seus gestos, pintam a imagem que desejo ser. Já o espelho e a fotografia me mostram como sou.

Fernando Pessoa relata a sua experiência com uma foto: todos os companheiros de escritório juntos, sorridentes. Ele, insignificante. Mas os companheiros lhe diziam: “Como estás bem, ó Fernando…” O espelho e as fotografias mostram a nossa insignificância. Mas os olhos da amada que sorriem ao me ver me dizem: “Como és belo…”

Milan Kundera, no seu livro A insustentável leveza do ser, medita sobre o mistério do amor entre Tomas e Tereza. “Tereza sabe que é mais ou menos assim o instante em que nasce o amor: a mulher não resiste à voz que chama sua alma amedrontada; o homem não resiste à mulher cuja alma se torna atenta à sua voz”.

“Parece que existe no cérebro uma zona específica, que poderíamos chamar de memória poética, que registra o que nos encantou, o que nos comoveu, o que dá beleza à nossa vida. Desde que Tomas conhecera Tereza nenhuma outra mulher tinha o direito de deixar a marca, por efêmera que fosse, nessa zona do cérebro.”

“As metáforas são perigosas. O amor começa por uma metáfora. Ou melhor: o amor começa no momento em que uma mulher se inscreve com uma palavra em nossa memória poética”. Tomas amava Tereza porque ela lhe viera doente, sozinha, febril. Enquanto cuidava dela veio-lhe a imaginação uma criança indefesa, que vinha a ele numa cesta de vime nas águas de um rio, como aconteceu a Moisés.

Cassiano Ricardo colocou sua meditação sobre o amor num poema terrível, inspirado talvez na pergunta de Agostinho: “O que amo quando te amo?” “Por que tenho saudade de você, no retrato, anda que o mais recente? E por que um simples retrato, mais que você, me comove, se você mesma está presente?”

O resto do poema é uma tentativa de dar uma resposta a essa pergunta. Mas a resposta é simples: o retrato, imóvel, sem respiração, é o lugar onde posso colocar a imagem daquela que amo e que mora em você mas não é você. Se não é você, é quem? Sou eu: “Ninguém a outro ama, senão ama o que de si há nele, ou é suposto…” Procuro-me na pessoa amada. Todos estamos à procura dos pedaços que nos foram arrancados.

No romance Quando Nietzsche chorou (maravilhoso!) Breuer pede a Nietzsche que o analise, em razão de uma paixão absurda: ele, quarentão, médico de reputação, casado, estava apaixonado por uma jovem histérica, Anna O., que se encontrava internada na sua clínica. A única pergunta que Nietzsche fazia ao apaixonado era: “Qual é o sentido? Qual é o sentido?” Traduzindo em nossa linguagem: “Qual é o nome do peixe encantado que nada nessa fonte chamada Anna O.?” Seria o seu sorriso de criança? Sua fragilidade? Sua dependência total? Faço a mesma pergunta a você: “Qual é o sentido?”

Roland Barthes perdeu a mãe. Ficou só. Na solidão empreendeu uma pesquisa: ajuntou todas as fotografias da sua mãe e foi, vagarosamente, uma a uma, procurando a imagem que ele amava. Porque não é em qualquer foto que a imagem aparece. Pois Barthes foi de fotografia em fotografia, todas de sua mãe, sem encontrar a imagem que ele procurava, até que a encontrou: uma velha fotografia de sua mãe criança! Era essa a imagem que ele amava: a criança que morava na sua mãe velhinha.

Mas, ditas todas essas coisas inúteis para os apaixonados, permanece a verdade do poema da Adélia Prado: O amor é a coisa mais alegre. O amor é a coisa mais triste. O amor é a coisa que eu mais quero…”

Um comentário:

  1. Ahhh...aí já é covardia.Vc se apoia nos gigantes da literatura! =)

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""Erótica é a alma""

Adélia Prado