domingo

VOCACIONADO AO AMOR

Fabrício Carpinejar Sou confuso hoje; você não tem idéia de como era quando vestibulando. Parti ao teste vocacional convicto que descobriria o que cursaria em minha vida. O teste seria minha cigana, minha cartomante, deflagraria meu destino e apenas me conformaria a seguir o veredicto. Sonhei com búzios, velas e o perfume misturado de todos os perfumes de uma loja de incenso. Algo místico, doente de escuro e milagres. A decepção é que não analisaram as linhas das mãos, um professor alcançou o lápis e um formulário neutro e me indicou a preenchê-lo. Sem nenhuma clarividência e conversa, atendi às instruções do cabeçalho da folha. Desenhei algumas formas a partir de frases, talvez árvores e um casarão com chaminé. Risível foi esboçar uma família com riscos de palitinho. Amarguei a sensação de regredir ao jardim da infância, com nome bordado no avental. Notei perguntas repetitivas e busquei elaborar uma versão diferente para cada uma delas. Enquanto os colegas terminavam rápido, esmerava nos detalhes. Meu raciocínio extravagante: esbanjar criatividade questão a questão. Assimilei bem depois, na cocheira do recreio com os amigos, a natureza pega-ratão das perguntas. O teste procurava coerência, definição de opinião, harmonia dos depoimentos. Ou seja, tudo o que não fiz. Na compulsão de ser inventivo, devo ter aparecido desequilibrado, mentiroso e fugindo da realidade. O mais espantoso do exame foi o resultado: meu perfil indicado para Engenharia. Dediquei duas décadas para desmerecer a revelação. Não duvido que não cismei com o norte e migrei ao sul. Recebi a direção da consulta e articulei meia-volta, passos enérgicos para o caminho contrário. Concluí o jornalismo, cursei mestrado em Letras, virei professor universitário, e meu maior prazer é a literatura. Pensando contigo, com seus olhos atentos ao meu texto, eu poderia não ter feito nada disso, é uma heresia o que estou escrevendo, mas só penso agora em fechar a janela da sala para não pôr um casaco. Se uma profissão pede, o amor exige vocação. Não consideramos o amor com a mesma seriedade. Como a decisão de uma vida. Ele é relegado à casualidade e ao arranjo provisório da idade. Agora sim, atingi o ponto: acredito sinceramente que sou vocacionado para amar. Todo homem é vocacionado a uma mulher, toda mulher vocacionada a um homem. Vocação é encontrar um grau inabalável de confiança que as frases dos dois não poderão mais ser editadas em separado. É nem se dar conta que está beijando ou falando, porque falar é beijar. Ao viver sabendo que ela existe, mesmo longe, o longe não será mais distante. A felicidade profissional começa na residência. Depois de residir. Gostaria de ser dona de casa. Servir uma mulher.

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""Erótica é a alma""

Adélia Prado