quarta-feira

NÃO ACREDITO EM QUEM NÃO SE DESACREDITA

Fabrício Carpinejar

Não acredito em quem confia demasiado em si. Quem nunca extravia a conversa, o jeito da vida, o sentido. Quem nunca se duvida antes de rezar. Quem nunca reza para se distanciar. Quem nunca desistiu de procurar termos no dicionário. Quem nunca se endivida antes do salário. Quem nunca perdeu uma amizade por uma palavra a mais, um amor por uma palavra a menos, uma leitura pela falta de insistência. Não perdeu o emprego, não perdeu um parente, não perdeu a paternidade de si mesmo. Não acredito em quem fala dos outros com convicção, com domínio e técnica, com destreza de faca e agulha. Não acredito em quem não se critica, não se perdoa, não volta atrás. Não acredito em que se julga maior do que a própria vida e se submete às comparações para subir a estima. Não acredito em quem não consulta a meteorologia para apenas constatar que não choveu na noite seguinte. Não acredito em quem enxerga a literatura como uma religião, os livros como mais importantes do que os filhos, os autores como deuses inquestionáveis. Não acredito em quem não se encolheu ferido, derrotado, acuado, mínimo. Não acredito em quem não tem fé para atravessar o rio a nado. Não acredito em quem não considera a possibilidade de fracasso. Não acredito em quem não lê os obituários na velhice. Não acredito em quem não revê suas fotos para se espalhar. Não acredito em quem capricha na letra. Não acredito em quem não modifica sua infância ao avançar. Não acredito em quem não esquece a data ao preencher o cheque. Não acredito em quem ultrapassa o sinal fechado sem medo. Não acredito que o submisso no trabalho não é estourado em família e que o estourado no trabalho não é manso em casa. Não acredito em quem não recusa ao menos três frutas antes de escolher. Não acredito nas verdades que não são mastigadas em silêncio, na arrogância que fala com a boca cheia. Não acredito em quem não olha para sua mulher e teme não merecê-la. Não acredito em quem não se sente culpado pelo excesso de trabalho. Não acredito em quem não se sente culpado pelo excesso de família. Não acredito em quem não passa numa praça ensolarada sem querer sentar. Não acredito em quem não vacila, não se desespera, não prensa o pulmão contra a parede de um relógio. Não acredito em quem professa ensinamentos com indiferença. Não acredito em quem mendiga culpados para sua raiva. Não acredito em quem usa chapéus dentro de casa. Não acredito em quem não foi deserdado em algum momento e fez das ruínas seu começo e seu final. Não acredito na literatura que não seja desconfiança. Não acredito que o desejo possa se repetir. Não acredito em quem não tem receio da morte. Não acredito, confesso que não acredito muitas vezes por dia.

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