domingo

Pedaços de Caio Fernando Abreu


"sabe, eu me perguntava até que ponto você era aquilo que eu via em você, ou apenas aquilo que eu queria ver em você,eu queria saber até que ponto você não era apenas uma projeção daquiloque eu sentia, e, se era assim,até quando eu conseguiria ver em você todas essas coisas que mefascinavam e que, no fundo, sempre no fundo,talvez nem fossem suas, mas minhas, e pensava que amar era sóconseguir ver, e desamar era não mais conseguir ver, entende?" [para uma avenca partindo - o ovo apunhalado.]


"Não consigo ver mais que isso: essa é a lembrança. Além dela, nósconversamos durante muito tempo na chuva, até que ela parasse, equando ela parou, você foi embora. Além disso, não consigo lembrarmais nada, embora tente desesperadamente acrescentar mais um detalhe,mas sei perfeitamente quando uma lembrança começa a deixar de ser umalembrança para se tornar uma imaginação. Talvez se eu contasse aalguém acrescentasse ou valorizasse algum detalhe, assim como quemescreve uma história e procura ser interessante - seria bonito dizer,por exemplo, que eu sequei lentamente seus cabelos. Ou que as ruas eas árvores ficaram novas, lavadas depois da chuva. Mas não direi nadaa ninguém. E quando penso, não consigo pensar construidamente, achoque ninguém consegue. Mas nada disso tem nenhuma importância, o que eu
queria te dizer é que chegando na janela, há pouco, vi a chuva caindoe, atrás da chuva, difusamente, uma roda-gigante. E que então penseinumas tardes em que você sempre vinha, e numa tarde em especial, nãosei quanto tempo faz, e que depois de pensar nessa tarde e nessa chuvae nessa roda-gigante, uma frase ficou rodando nítida e quase dura nomeu pensamento. Qualquer coisa assim: depois daquela nossa conversa -depois daquela nossa conversa na chuva, você nunca mais me procurou."


"sabe que o meu gostar por você chegou a ser amor, pois se eu mecomovia vendo você, pois se eu acordava no meio da noite só pra vervocê dormindo, meu deus como você me doía de vez em quando, eu vouficar esperando você numa tarde cinzenta de inverno bem no meio dumapraça, então os meus braços não vão ser suficientes para abraçar vocêe a minha voz vai querer dizer tanta, mas tanta coisa que eu vou ficarcalada, um tempo enorme só olhando você sem dizer nada, só olhando epensando, meu deus mas como você me dói de vez em quando."

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""Erótica é a alma""

Adélia Prado