quinta-feira

QUANDO ELA ESTIVER COM OUTRO

Fabrício Carpinejar A dor é educada fora de casa. Dentro dos limites do portão, pode chorar, espernear, jogar objetos pela janela, quebrar os cds, empurrar os livros da estante. Em público, é cortês e polida. Não significa que não está louca por um escândalo. Está e se contém e se censura. No amor, morre-se em segredo, numa hemorragia interna, sem ferimento a pôr as pessoas em desespero ao seu redor tentando socorrê-lo. Não há quem não tenha sofrido o enfrentamento de encontrar uma paixão com outro namorado. Onde menos se espera, constatar que ela o esqueceu ou finge esquecer com habilidade. Que não era insubstituível, que é uma foto queimada e chaves devolvidas. Na vulnerabilidade de uma conversa entre amigos, seu rosto fica branco ao reparar ela beijando e abraçando um estranho. Corre ao banheiro para banhar o pescoço e aliviar a queimação. É um ódio e uma desvalia enormes como se a traição acontecesse ainda no momento que permaneciam juntos. Só que vocês não estão mais juntos. Nem se observa muito para não dar na vista. Não se olha nos olhos dela. De canto, percebe as mãos dela fazendo movimentos circulares nas costas dele, a pedir com volúpia a aproximação da cintura. Igualzinho como na época do namoro contigo. É um drama rever quem se gostava comprometida. Seria sorte se apenas os cotovelos doessem - é todo o corpo. Toda a ausência do corpo dela no seu. Esperava que a vida conspirasse a favor, de que ainda voltariam. Não fez nada para que acontecesse o retorno, mas esperava que o tempo parasse para pensar e facilitasse a reconciliação. De repente, ela não está desejando uma revanche, vive a possibilidade de amar de novo. É difícil aceitar isso, queria que ela estivesse trancada no quarto, de luto, chorando um morto, enquanto você saía e aproveitava a noite. Nenhuma alma o convencerá do contrário. Tende ao exagero, a distorção. Ela abraça o cara e entende que se esfrega nele, ela o beija e entende que o lambe. Alheio à verdade (a verdade pouco importa diante do coração), reconhece a cena como uma vingança calculada, um acerto de contas. Elabora a tese de que ela apareceu justamente no bar que freqüenta para suscitar o ciúme e abalar suas convicções de despedida. Baba de raiva, de dó, de pena de seu futuro. Ela acena. Não existe saída para fugir de falar com ela; decide se aproximar do casal. Cumprimenta o novo namorado com formalidade e distanciamento. Pergunta como ela vai e suporta escutar um "nunca estive tão bem". Apesar dos calafrios, não retruca. Apesar da vontade de virar a mesa e ofendê-la de cadela, não retruca. Apesar do ímpeto de esmurrar o nariz do rapaz e findar aquela felicidade inconsciente de mosca na teia de aranha, não retruca. Não, não diz nada. Perdeu o domínio de revidar. A dor faz nascer um orgulho inquebrantável. Orgulho insensível e gélido. Orgulho de animal do pântano, acostumado a rastejar no escuro. Não entregará o que sente. Calará para sempre. Agora sim é um morto, como queria que ela o tratasse. Mas ela não chora por você. É o morto que chorará em casa. Sozinho, debaixo da terra dos lençóis. Chorará a impossibilidade de ser honesto.

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""Erótica é a alma""

Adélia Prado