terça-feira

DESPEDIDA DE ANA

Fabrício Carpinejar

DESPEDIDA DE A...
Não era esse o final da minha história. Ela nem tinha final...

Você mudou minha literatura, mudou a alma de meus sapatos. Você me deu um ventre e um filho. Você me ensinou a esperar na cozinha a bacia de roupas, para levarmos até o sol. Você soltou minha cintura, pesada, para que pudesse rodar como um pião. Você, tão você, tão eu. Como avisar ao amor que ele terminou se ele não precisou de meus conselhos? Como avisar ao filho que tudo dói sem um lugar certo para soprar? Você põe os travesseiros na janela, para a vizinhança invejar o nosso cheiro. Para a vizinhança sentir que um casal amou a noite inteira. Os travesseiros são o canteiro de flores e ervas que esquecemos de concluir na varanda. Hoje nossa janela estará fechada. Você me amou em dobro, e eu acreditei que era dois. Eu a amei pela metade, você completou o que faltava. Você se veste no espelho do banheiro e se confirma no espelho da sala. Você liga o secador e não escuta o telefone. Não me escuta agora gritando por você. Eu sempre falei demais, eu sempre transbordei o café na xícara. A toalha de mesa não me perdoa. Transbordei-me e era o que menos tinha. Minha mão esquerda está castrada. As palavras não têm sentido. A língua portuguesa morreu para um homem. Vejo você mesmo quando não a via. Sua mania de deixar as toalhas molhadas na cadeira. Sua mania de se demorar na cama para não descer as escadas e pegar o jornal. Você: invisível. Que se levantava de noite várias vezes para atender o pequeno e eu não notava. Que se levantava em mim várias vezes para acomodar minha respiração e eu não notava. Você: de sono leve como uma fruta madura. Você: de uma pureza devassa. A única mulher que me fez bonito. Que me fez sair da infância. Que puxou minha cadeira para sentar. Você, só poderia pintar as unhas para você, pintar as mãos, pintar a pele toda, ser uma tela viva pedindo sua assinatura. Eu não era nada sem você. Sou o apartamento vazio. Minhas roupas já não me aceitam, perdi o tamanho e o número. Você, tão você, tão eu. Nenhuma mulher soube mais do que você. Teve mais orgulho de mim do que você. Teve mais pena de mim do que você. Teve mais cansaço. Teve mais alegria. Você. Sempre você, no passado e daqui por diante. Minha amiga terrível, que explicou a verdade o que ela não havia vivido, que ensinou a paternidade a dar três beijos e uma história. Minha amante, muito melhor do que um vinho dormindo. Minha confidente, muito melhor do que um segredo guardado. Minha fome inédita, minha bebida, que devolve o gosto de boca para a boca. Você que lia meus textos antes de publicar, nunca publiquei antes de sua leitura. Não vivia qualquer coisa antes de sua leitura. Você, que todos falam que é uma mulher forte, e é forte porque não podia ser fraca. Ninguém a deixou ser fraca, nem eu. Nunca a deixei sofrer, pois se preocupava primeiro com o meu sofrimento. Você que fala poesia sem precisar anotar, que faz poesia para esquecer. Eu não li o que estava escrito em meu próprio corpo. Você mudou minha literatura - pena que o homem não acompanhou.

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""Erótica é a alma""

Adélia Prado