quinta-feira

LUTO DE BRANCO

Fabrício Carpinejar
Não consigo prever o que é, nem sempre o amor pela cidade é recíproco ou acontece à primeira vista. São pequenas resistências que nos esfriam até pensar que não valerá a pena insistir. É um ensaio, um segundo, um terceiro para puxar conversa e não há um parco esboço de simpatia do lado inverso. E passo a crer que o problema é comigo. Eu amo Belém, eu amo Campo Grande, eu amo Recife, eu amo Goiânia, eu amo Brasília, eu amo Curitiba, eu amo Belo Horizonte (e seu interior de capela), eu amo São Paulo, eu amo Rio de Janeiro, eu amo Fortaleza. Sem contar o meu estado, onde a minha respiração já é vento. Não foi escancarar a minha poligamia pelas cidades. São muitas, cidades que me engravidaram, cidades que fizeram esquina com a minha infância, cidades que demorei a me despedir, cidades que abriram bairros em meu pescoço. Pois é, sofri horrores para me entender com Joinville. E não me compreendi tampouco com sua natureza sigilosa, encravada entre morros, acostumada ao sobrevôo perpétuo da garoa. Município invisível na estrada - é preciso entranhar-se em seu miolo para descobrir as primeiras casas. As praças não têm bancos, são ruas desertas. Não esbarrei com ninguém gargalhando na rua, satisfeito, embriagado de si, pensando alto uma bobagem. Será impressão? Virei um fantasma sem trocar de roupa. Não serei injusto, certo, conheci gente ótima: Sílvio e sua família, Juciano, Elisa, Josiane, Rubens, Tiago. Mas uma série de equívocos me deixou indefeso. Podem ter sido dois dias infelizes, também pode ser conflito de temperamentos. Quem diz que não foi azar? Talvez regresse na primavera e não experimente nenhum contratempo. Busquei jantar numa lanchonete em frente ao clube. Restava uma mesa vaga, só que imunda de batatas, guardanapos e boçalidade de catchup dos últimos fregueses. Uma mesa sangrando, para sugerir o mínimo. Aguardei que o garçom limpasse para sentar. O garçom gritou, totalmente indisposto: "Só um minutinho, não dá para fazer tudo". Ele não murmurou boa-noite, não abriu seus braços com cordialidade para me acomodar. Sentiu-se agredido pela menção à sua ajuda, quem era eu para dirigir a palavra?, e partiu em direção à cozinha. Foi a única conversa que tive com ele - e a última. Limpar a mesa seria um favor, não uma regra do local. Dez minutos depois, o garçom recolheu os pratos, e fez de conta que não havia mais sujeira. Para provocar, retirava os destroços em lentas etapas. Desapareci para ele. Entenderia se a hostilidade surgisse por minha impaciência com a chegada do pedido, sequer espiei o cardápio. Enganei a fome no McDonalds mais próximo. Comer na rede americana mostra a impessoalidade da minha passagem. Apresentei-me antes num bar. Convidado de propósito para o sarau, carregava a generosa expectativa de interagir com os novos autores. O espaço aberto não contribuiu para criar intimidade, a luminosidade dispersava os copos, o trânsito à margem buzinava com seus insetos metálicos e trepidantes. Deveria ter percebido o desajuste quando escutei “Amor e Poder” no alto-falante. Tocou mais de uma vez “Como uma deusa”. Pela repetição exagerada, desconfiava que era o hino do estabelecimento. Li textos que julgava engraçados e não recebi eco, riso, espanto, esgar, névoa de palavra. Palmas formais para encerrar e sair. Não que tenha fracassado, eu não existi. Fracasso ainda é nascimento. A ironia não fora compreendida, uma rua na linguagem para ir e outra paralela para voltar. Terrível foi o dono do lugar, que me censurou na quarta crônica. Comentou que a quantidade de palavrões afugentaria os clientes. Esqueceu o espírito do contexto, a literatura, o próprio humor, para reencarnar meu professor de Moral e Cívica do Ensino Fundamental. Faltou apenas me mandar ao SOE. Não me desembaracei da estranheza. Vi dois carros se espatifando nos postes em menos de uma hora, vi casais virando o rosto com brincadeiras, vi o organizador desmarcando a carona ao aeroporto por estresse, vi a indiferença perante a poesia. Joinville estava cansada de amar naquela noite. Indisposta. Louca por um cobertor xadrez para fugir de mim e da chuva. De lá, guardarei a lição de uma mãe que perdeu o filho. Desde que o guri morreu, há dois anos, ela veste exclusivamente branco. Parece desafiar Deus. Ao invés de enegrecer a dor, seu luto é de esperança. Ela, sim, teria todos os motivos para chorar, e rezava com vigor e entusiasmo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

""Erótica é a alma""

Adélia Prado