terça-feira

A AMIZADE DAS ROUPAS

Fabrício Carpinejar Agradeço a tolerância da roupa, a fidelidade escura. Ao transar, piso nela, arrasto-a pelo quarto pouco me importando com seu preço, sua estréia, suas prestações, seu destino. Arrasto-a como chinelos de tamanho menor. Quem diria que na mesma tarde deslizei com paciência o ferro em seu tecido para expelir as dobras? Quem diria que a coloquei no cabide abrindo espaço entre os casacos? Quem diria que joguei trajes fora para ela não sofrer asfixia? Quem diria que poderia brigar o dia inteiro para remover sombras de mancha? Quem diria que não a emprestaria, sob hipótese alguma, para um amigo? Agora sou a memória do outro. Elas dormem no chão, humilhadas, ofendidas pelos sapatos, desalinhadas e abandonadas. Cobrem o piso tal jornais antes da pintura das paredes. Foram arrancadas com fúria, despejadas do corte preciso, desdenhadas do acabamento. O cinto é uma cobra morta a pedradas. A calça é uma sanfona sem ar. A camisa é uma poça de vento. Defenderam a nudez e foram penalizadas com o desterro. Ao acordar, sou o outro da memória. Alço as peças com caprichos de um restaurador. Reponho a ordem da luz. Pressiono a blusa de minha mulher contra o rosto e cheiro com vontade enquanto ela descansa, cheiro cada um dos vincos, a malha perfumada, investigo o sabonete escolhido, o xampu, a loção de pele, as invasões do tato, e reconheço sua nobreza que permitiu ao corpo se alastrar pela casa.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

""Erótica é a alma""

Adélia Prado