terça-feira

PARA UMA AVENCA PARTINDO

Caio Fernando Abreu
Quadro: Lucemar de Souza

Olha, antes do ônibus partir eu tenho uma porção de coisas pra te dizer, dessas coisas assim que não se diz costumeiramente, sabe, dessas coisas tão difíceis de serem ditas que geralmente ficam caladas, porque nunca se sabe nem como serão ditas nem como serão ouvidas, compreende? Olha, falta muito pouco tempo, e se eu não te disser agora talvez não diga nunca mais, porque tanto eu como você sentiremos uma falta enorme de todas essas coisas, e se elas não chegarem a ser ditas nem eu nem você nos sentiremos satisfeitos com tudo que existimos, porque elas não foram existidas completamente, entende, porque a vivemos apenas naquela dimensão em que é permitido viver, não, não é isso que quero dizer, não existe uma dimensão permitida e uma proibida, indevassável, não me entenda mal, mas é que a gente tem tanto medo de penetrar naquilo que não sabe se terá coragem de viver, no mais fundo, eu queria dizer, é isso mesmo, você está acompanham do o meu raciocínio/? Falava do mais fundo, desse que existe em você, em mim, em todos esses outros com suas malas, suas bolsas, suas maçãs, não, não sei porque todo mundo compra maças antes de viajar, nunca tinha pensado nisso, por favor, não me interrompa, realmente não sei, existem coisas que a gente ainda não pensou, que a gente nunca pense, eu, por exemplo, nunca pensei que houvesse alguma coisa a dizer além de tudo o que já foi dito, ou melhor, pensei sim, não, pensar propriamente não, mas eu sabia, é verdade que eu sabia, que havia uma outra coisa além de nossas mãos dadas, dos nossos corpos nus, eu dentro de você, e mesmo atrás dos silêncios, aqueles silêncios saciados, quando a gente descobria alguma coisa pequena para observar, um fio de luz coado pela janela, um latido de cão no meio da noite, você sabe que eu não falaria dessas coisas se não tivesse a certeza de que você sentia o mesmo que eu a respeito dos fios de luz, dos latidos dos cães. É, eu não falaria, uma vez eu disse que a nossa diferença fundamental que você era capaz apenas de viver as superfícies, enquanto eu era capaz de ir ao mais fundo, de não sentir medo desse mais fundo, você riu “...” você cresceu em mi mim dum jeito completamente insuspeitado, assim como você fosse apenas uma semente e eu plantasse você esperando nascer uma plantinha qualquer, pequena, rala, uma avenca, talvez uma samambaia, no máximo uma roseira, é, não estou sendo agressivo não, esperava, de você apenas coisas assim, avenca, samambaia, roseira, mas nunca, em nenhum momento essa coisa enorme que me obrigou a abrir todas as janelas, e depois portas, e pouco a pouco derrubar todas as paredes e arrancar o telhado para eu você crescesse livremente, você não crescia se eu a mantivesse presa num pequeno vaso, eu compreendi a tempo que você precisava de muito espaço, claro. Olha, é bom você pegar a sua passagem, porque você sempre perde tudo nessa sua bolsa, não sei como é que você consegue, é bom ficar com ela na mão pra evitar qualquer atraso, sim, é bom evitar atrasos, mas agora escuta: eu queria te dizer uma porção de coisas, de uma porção de noites, ou tardes, ou manhãs, não importa a cor, é, a cor, o tempo é só uma questão de cor, não é? Pois isso não importa, eu queria era te dizer dessas vezes em que eu te deixava e depois saía sozinho, pensando nas coisas que eu não ia te dizer, porque existem coisas terríveis que precisam ser ditas, não faça essa cara de espanto, elas são realmente terríveis, eu me perguntava se você era capaz de ouvir, se você teria disponibilidade para ouvi-las, disponível em relação a quê? Sabe, eu me perguntava até que ponto você era aquilo que eu via em você, eu queria saber até que ponto você não era apenas um projeção daquilo que eu queria ver em você, e, se era assim, até quando eu conseguiria ver em você todas essas coisas que me fascinavam e que no fundo, sempre, no fundo, talvez nem fossem suas, mas minhas, e pensava que amar era só conseguir ver, e desamar era não mais conseguir ver, entende? “...” claro que dou um cigarro pra você, não, ainda não, faltam uns cinco minutos, eu sei que você não devia fumar tanto, é, eu sei que meus dentes estão ficando escuros, e essa tosse intolerável, você acha mesmo a minha tosse intolerável? Eu estava dizendo, o que é mesmo que eu estava dizendo? Ah: sabe entre duas pessoas essas coisas que devem ser ditas, o fato de você achar minha tosse intolerável, por exemplo, eu poderia me aprofundar nisso e concluir que você não gosta de mim o suficiente, porque se você gostasse, gostaria também da minha tosse, dos meus dentes escuros, mas não aprofundando não concluo nada, fico só querendo te dize “...” eu vou te dizer todas as coisas, é por isso que estou falando, “...” é fundamental que você preste atenção em todas as palavras, todas, e não fique tentando descobrir os sentidos ocultos por trás do que estou dizendo, sim, eu reconheço que muitas vezes falei por metáforas, e que é chatíssimo falar por metáforas “...” está bem, eu espero aqui do lado da janela enquanto o ônibus não sai, espera, as macãs ficam comigo, é muito importante, vou dizer tudo numa só frase, você vai
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sim, sei, eu vou escrever, não, eu não vou escrever, mas é bom você botar um casaco, está esfriando tanto, depois, na estrada, olha, antes do ônibus partir eu quero te dizer uma porção de coisas, será que vai dar tempo? Escuta, não fecha a janela, está tudo definido aqui dentro, é só uma coisa, espera um pouco mais, depois você arruma as malar e bolsas, fica tranqüila, esse velho não vai e incomodar você, olha, eu ainda não disse tudo, “...” eu preciso de muito silêncio e muita concentração para dizer todas as coisas que eu tinha pra te dizer, olha, antes de você ir embora eu quero te dizer quê...

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