quinta-feira

DUAS VEZES MONOGÂMICO

Fabrício Carpinejar (DRUMMOND NÃO FOI VINICIUS DE MORAES)

Há homens infiéis que são mais monogâmicos do que os fiéis. Antes que alguém me acuse de disparate, explico. Lembro de Drummond que durante trinta e seis anos teve uma mesma amante, Lygia Fernandes, não interrompendo seu casamento de meio século com Dolores. Ele entrava na residência de sua namorada em Ipanema como um marido regrado. Sempre de tarde, após o serviço no Ministério da Educação. E voltava de noite para seu apartamento em Copacabana, poucas quadras dali, com igual severidade, aos braços de sua mulher. Sofro com sua hesitação – curta no tempo, longa no espírito - diante das chaves em seu molho no momento de abrir a porta. Não bastava uma casa, ele ajudava duas. Duplamente monogâmico. Fazia o tipo conservador. Nenhuma das duas mulheres o poderiam trair. Mas não julgava traição estar entre as duas. Não fugia de um casamento por uma aventura, fugia de um casamento para outro casamento. Deixava uma estabilidade para uma outra estabilidade. Deixava os problemas de um lar para os problemas do outro. As contas de um pelo outro. As preocupações de um pelo outro. Nossa... Não posso classificá-lo de amante, mas de doido pelo matrimônio, incapaz da infidelidade que deveria ser provisória. Ele não aspirava ao sexo casual, ao prazer momentâneo, à euforia inconseqüente, buscava o compromisso. Qualquer rua o levaria ao cartório. Ele não se apaixonava de cara, ele amava de cara, sem curso preparatório para noivos. Não percebia que quando a amante passava a recebê-lo em casa, ele já era da família. A comodidade o embaraçava. Não o vejo dotado da indiferença, preparado emocionalmente a não atender o telefonema e enterrar as suspeitas. As suspeitas o enterravam. Suscetível às ameaças, ao charme da carência, à inteligência da culpa. As mulheres transformadas em filhas, em que ele tenta igualar a criação e a distribuição de mimos. Ao toque de um interurbano secreto, saía correndo. Tinha emergências de um cardiologista (e era enorme o risco de morrer de coração). Ele apegava-se, enraizava-se, moldava-se e não largava mais. Ele nunca escolhia, acumulava. Conheço homens que são tão apaixonados pelo casamento que mantém duas ou três histórias duradouras. E a duplicidade só será descoberta no velório, quando é perigoso apontar qual é a verdadeira viúva. Todas choram com ímpeto espartano, e acariciam as alças com os caprichos de uma aliança. Eles não estão procurando encontrar algo que falta no casamento, e sim repetir o que encontraram. O lado bom e o ruim. Não duvido que o lado ruim mais do que o bom. Talvez se sintam tão ameaçados pela desvalia, carentes, que multiplicam suas estradas e criam cadernetas de poupança para evitar uma das falências. Se um casamento é complicado, pesaroso entender o esforço de sustentar dois ao mesmo tempo. Ele trocará lâmpadas em duas casas, matará baratas em duas casas, pagará duas vezes IPTU, abrirá os potes de pepino em duas casas, trocará a resistência do chuveiro em duas casas? É muita valentia. Ou burrice. Reclamar que não há nada na geladeira eternamente e freqüentar o mercado mais vezes do que um caixa. Será que um cachorro o esperava em cada área de serviço com lambidas no rosto? Como não se confundir no sono, não soltar um nome fora de hora? Não embaraçar o que foi vivido num bairro do que foi vivido noutro? Não denunciar que não conhece um restaurante quando o garçom se aproxima com indisfarçável ironia? Não se tornar paranóico com seus conhecidos, querendo eliminar as suspeitas? A memória tem que ser prodigiosa, para decorar as datas de aniversários das mulheres. Não me refiro a um dia, que seria fácil, porém o imenso e repetido calendário que envolve os cuidados amorosos. O dia do primeiro encontro, o dia do primeiro beijo, o dia da primeira transa, o dia de morar junto. Eu já fiquei cansado ao simular. Na hipótese dele se esquecer de alguma delas, estar pronto para discutir o relacionamento. Imagina brigar em duas casas? Largar uma discussão para começar a seguinte, com motivos e ciúme parecidos. Passar a vida se explicando, em crise, e se explicando sem ter razão. Coitados dos homens que não conseguem se separar, e se casam e se casam com os casos para caçar loucamente o amor de qualquer jeito. Qualquer jeito não é amor.

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