quarta-feira

AMADA ANA,

Fabrício Carpinejar

Nasci de uma saudade longa de você. Estar contigo é só aumentá-la. E nem quero adoecer de outra maneira. Se estar contigo é apressar o fim, nunca estive tão à vontade longe de meu nascimento. Gosto de pegar seu nome no ar antes de estourar, de segurar suas calças pelos bolsos e de trançar suas mechas nos ouvidos. Você fala comigo olhando nos olhos, abaixo meus olhos de pudor, nunca fui tão olhado. A respiração me encoraja a correr para sua boca e interromper seu olhar, não sei olhar nos seus olhos enquanto fala comigo. Não é covardia, é falta de jeito. Prefiro subir pelas escadas em seu corpo. Seria melhor não escrever do que usar a desculpa da ficção quando falho na vida. Responsabilizar-se por cada uma das palavras, conhecendo de antemão quantos gramas pesa na língua. Não dizer o que não acredito, não comprar no idioma o que não preciso, não invejar o que não tenho. Seria melhor não escrever do que passar a imagem de marido perfeito, pai perfeito, amigo fiel. Só você sabe o que sou! Invento, projeto, falsifico, me completo com o que escuto e falo com o que posso ouvir. Até eu me apaixonaria por mim se não me conhecesse. Mas vivo desmarcando encontros comigo. Se eu for chato, insistente, vaidoso, ambicioso? Como dar o fora em mim? Sou incompetente para tanta coisa que muitas vezes nem começo para não entregar minha incompetência. É mais fácil perdoar um escritor - ele se defende com folga, é articulado, inverte os papéis, mas não significa que não cometeu erros da mesma forma daquele que não tem palavras. Peço desculpa por pensar que a literatura é suficiente, não é, nunca vai ser, uma noite saímos dela e não teremos exemplares para nos justificar e não teremos leitores para nos confortar e seremos tão-somente o que vivemos, o magro pão dormido e a manteiga do sol. Terei que sair do livro e esperá-la do outro lado da rua. Terei que ser mais do que uma frase bonita e um par de mãos para esconder sua fragilidade. Terei que ser verdadeiro. Eu não consegui inventá-la, você desobedeceu o autor e sumiu com o final do livro. Eu não consegui inventá-la, podia apenas descobri-la. Será que depois de morto ainda enfrentarei pesadelos? Até que a morte nos separe é muito pouco para mim. Preciso de você por mais de uma vida.

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""Erótica é a alma""

Adélia Prado