terça-feira

Não quero


Fabrício Carpinejar

Não quero estar certo, não quero ter razão, não quero ter opinião para qualquer coisa, não quero. Não quero falar sério, não quero a verdade, não quero. Não quero dizer se é tarde ou cedo, se é novo ou velho, se é bom ou ruim, não quero me proteger, não quero. Não quero ser correto, ser um pai exemplar, um filho exemplar, um marido exemplar, não quero exemplos. Não quero chegar na hora certa, na honra errada, não quero impressionar, não quero morrer uma única vez, não quero. Não quero ter um endereço, um guarda-chuva, um testamento, não quero. Não quero me salvar, me converter, me ajuizar de modos, não quero. Não quero palavras inteiras, quero apontar com o dedo, não quero concordar rápido, não quero. Não quero contar o número de janelas, o número de portas, o número de vizinhos, não quero. Não quero me repetir para me confirmar, decidir para me poupar, quero baldear as estradas mais remotas, encontrar pouca coisa que não há como lembrar. Não quero falar o que se espera, esperar o que não existe, não quero. Não quero usar talheres pequenos e grandes, cálices pequenos e grandes, pratos pequenos e grandes, não quero. Não quero acusar, dar um preço, dar um parecer, dar uma sentença, não quero. Não quero a demora sem manchas, o sol sem videiras, arrendar uma carta, não quero. Não quero um livro se não sentir frio nos pés, não quero uma música se não aquecer as mãos, não quero um amor se não me distrair para o que não queria, não quero. Não quero a fama da modéstia, uma rua sem becos, uma casa sem fundos, não quero. Não quero uma chuva sem pensar em dilúvio, não quero um conhecimento que perca a simplicidade, não quero uma oração que não seja úmida, não quero. Não quero passar a porta sem metal, passar o orvalho sem as unhas, passar o ouvido de uma cidade sem ao menos escutar um sino, não quero. Não quero conversar com os mortos em um copo vazio, os mortos merecem mais respeito, não quero ter cuidado com os lábios, ajeitar o cabelo para as despedidas, não chorar em público, não quero. Não quero ser comedido, contido, tolhido, não quero. Quero ser combatido, me combater como uma doença sem cura. Não quero separar as chaves, as amizades, as obras, não quero. Não quero silenciar sem silêncio, quero uma ruga para achar meu rosto, quero amar antes da missa, quero ver a pedra dentro da escada, a escada dentro da árvore, um barco a seco. Quero amarrar uma corda no lugar do cinto, amassar o verão da grama, andar de cadarço desamarrado, olhar perdoando por não olhar meus olhos perdoando. Não quero uma notícia para ser real, garantias, fiador, caução, não quero. Não quero a imponência, a importância, a indiferença, não quero. Quero percorrer uma escola em pleno recreio para despertar a voz mais abafada, quero regressar lento para onde não nasci, predestinar a dor a uma alegria. Não quero confirmar milagres, continuar sem parar, acreditar sem desistir, não quero. Às vezes, só não quero existir tanto.

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""Erótica é a alma""

Adélia Prado