Ser inteiro custa caro.
Endividei-me por não me dividir
.Atrás da aparência,
há uma reserva de indigência,
a volúpia dos restos.
Parto em expedição às provas de que vivi.
E escavo boletins, cartas e álbuns-
o retrocesso da minha letra ao garrancho.
O passado tem sentido se permanecer desorganizado.
A verdade ordenada é uma mentira.
O musgo envaidece as relíquias.
Os dedos retiram as teias,
assisto à revoada de insetos das ciladas.
Fujo da claridade, refulge a poeira.
O par de joelhos na imobilidade de um rochedo.
Reviso o testamento,
alisando a textura
como um gramático da seda.
Desvendo o que presta pelo som do corte.
O que ansiava achar não acho
e esbarro em objetos despossuídos de lógica
que me encontram antes de qualquer pretensão.
O que fiz cabe numa caixa de sapatos.
Colecionava talhos de madeira,
bonecos
adornados com a ponta miúda do canivete.
Lá estava um dos sobreviventes,
desfocado,vizinho das medalhas escolares
e dos parafusos condoídos de ferrugem.
Um auto-retrato não seria tão fidedigno.
Eu era aquela frincha de chão florido, casca e húmus.
Quantas foram as miudezas que não combinavam
com o conjunto e, na falta de harmonia,
abandonei no depósito da infância?
E se faltou confiança para restaurá-las ao convívio,
faltou coragem para excluí-las em definitivo.
Somos o desperdício do que estocamos.
Não aprendemos a desaprender.
Não doamos nada, nem a palavra passamos adiante.
O porão tem vida própria e respira
o que jogamos fora.
O que refugamos na ceia volta a nos mastigar.
Tudo pode fermentar:
o forro,
os passos,
o odor do braço.
Tudo pode nascer sem o mérito do grito,
como um murmúrio ou estalar de um abraço.
Tudo pode nascer,
ainda que abafado.
(Segunda Elegia, Terceira Sede)
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""Erótica é a alma""
Adélia Prado