domingo

DIÁRIO DE UM APAIXONADO V


Fabrício Carpinejar

O apaixonado é um obsessivo.

Pode ficar uma noite inteira repetindo o mesmo gesto como se fosse novo.

Dormir é de menos.

Emenda noites seguidas.

O apaixonado não dorme, desmaia.

O apaixonado muda de lugar no restaurante e esquece os óculos.

É um preguiçoso, vai escolher uma música ou um poema para dizer o que sente.

O guarda-chuva é o chapéu dos apaixonados. Melhor ainda se for uma sombrinha verde.

É um consumidor contumaz das coisas que não prestam.

Passa a se amar mais, tanto que o amor próprio é o único rival de sua paixão.

O apaixonado é um viúvo alegre.

Jamais toma sopa.

Quando o apaixonado começa a falar de admiradoras secretas, o caso já é público.

Debruça o tronco na mesa sem as mãos.

Como uma marionete.

O apaixonado duvida do que ele mais acredita. Finge duvidar para ouvir outra vez.

Sua memória é a do peixe.

Pensa o pior para viver melhor, antes pensava o melhor para viver o pior.

O apaixonado faz diálogos sem edição. Encontra um motivo para falar de quem está amando mesmo sem motivo.

O gosto da boca do apaixonado não se altera conforme a comida. Pode vir espinafre que continua bom.

Termina a relação toda hora para sempre recomeçar.

Está somente doente para o trabalho.

O apaixonado cheira a sexo mesmo quando não transou.

Está enterrado entre dois seios."Apesar de tudo" não existe para o apaixonado, só para os conformados.

A poesia pode aparecer antes ou depois do sexo, nunca durante.

A ansiedade do apaixonado é a de um fanático.

Corrige o que foi dito com o suspiro.

Não consegue ser sucinto, nem escrever um telegrama ou um epitáfio.

Não procura sentido para a vida, basta não ter sentido para vivê-la.

Facilita denúncias.

Conta unicamente para sua paixão o que não podia contar.

Tudo o que não fez numa vida completa em uma noite.

O apaixonado mente para melhorar suas verdades.

Tem o estranho hábito de não ter hábitos.

Não lê jornal. Tanto faz o mundo.

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