quarta-feira

A morte é uma piada

Martha Medeiros

Assisti a algumas imagens do velório do Bussunda, quando os colegas do
Casseta & Planeta deram seus depoimentos. Parecia que a qualquer
instante iria estourar uma piada. Estava tudo sério demais, faltava a
esculhambação, a zombaria, a
desestruturação da cena. Mas nada acontecia
ali de risível, era só dor e perplexidade, que é mesmo o que a morte
causa em todos os que ficam. A verdade é que não havia nada a
acrescentar no roteiro: a morte, por si só, é uma piada pronta. Morrer é
ridículo.

Você combinou de jantar com a namorada, está em pleno tratamento
dentário, tem planos pra semana que vem, precisa autenticar um documento
em cartório, colocar gasolina no carro e, no meio da tarde, morre. Como
assim?

E os e-mails que você ainda não abriu, o livro que ficou pela metade, o
telefonema que você prometeu dar à tardinha para um cliente?

Não sei de onde tiraram esta idéia: morrer. A troco? Você passou mais de
10 anos da sua vida dentro de um colégio estudando fórmulas químicas que
não serviriam pra nada, mas se
manteve lá, fez as provas, foi em frente.
Praticou muita educação física, quase perdeu o fôlego, mas não desistiu.
Passou madrugadas sem dormir para estudar pro vestibular mesmo sem ter
certeza do que gostaria de fazer da vida, cheio de dúvidas quanto à
profissão escolhida, mas era hora de decidir, então decidiu, e mais uma
vez foi em frente. De uma hora pra outra, tudo isso termina numa colisão
na freeway, numa artéria entupida, num disparo feito por um delinqüente
que gostou do seu tênis.

Qual é?
Morrer é um chiste. Obriga você a sair no melhor da festa sem se
despedir de ninguém, sem ter dançado com a garota mais linda, sem ter
tido tempo de ouvir outra vez sua música preferida. Você deixou em casa
suas camisas penduradas nos cabides, sua toalha úmida no varal e,
penduradas também,
algumas contas. Os outros vão ser obrigados a arrumar
suas tralhas, a mexer nas suas gavetas, a apagar as pistas que você
deixou durante uma vida inteira. Logo você, que sempre dizia: das minhas
coisas cuido eu.

Que pegadinha macabra: você sai sem tomar café e talvez não almoce,
caminha por uma rua e talvez não chegue na próxima esquina, começa a
falar e talvez não conclua o que pretende dizer. Não faz exames médicos,
fuma dois maços por dia, bebe de tudo, curte costelas gordas e mulheres
magras e morre num sábado de manhã. Se faz check-up regulares e não tem
vícios, morre do mesmo jeito. Isso é para ser levado a sério?

Tendo mais de cem anos de idade, vá lá, o sono eterno pode ser
bem-vindo. Já não há mesmo muito a fazer, o corpo não acompanha a mente,
e a mente também já rateia, sem
falar que há quase nada guardado nas
gavetas. Ok, hora de descansar em paz. Mas antes de viver tudo, antes de
viver até a rapa? Não se faz.

Morrer cedo é uma transgressão, desfaz a ordem natural das coisas.
Morrer é um exagero. E, como se sabe, o exagero é a matéria-prima das
piadas. Só que esta não tem graça.

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