segunda-feira

Drummond baixou sobre mim...

Rubem Alves

Carlos Drummond de Andrade, um homem manso. A mansidão está naquele rosto triste, que me faz lembrar os farmacêuticos das cidades do interior de Minas Gerais. Está na sua voz baixa, quase rouca, que desconhece argumentos e eloqüência, voz que só deseja dizer os seus poemas. Está nos seus poemas, sem arroubos, sem pressa, fotografias das coisas simples do cotidiano. Manso. Qualquer perturbação de raiva seria impensável na imagem do Drummond.

Mas... Eu já disse que o corpo é um albergue. Nele moram muitas versões de mim mesmo. Há uma versão oficial, pública, o dono do albergue, aquele que se vê sempre. Mas nos quartos do albergue moram muitos outros, todos eles com o mesmo rosto, mas diferentes por dentro. Em mim moram o Rubem escritor, o educador, o falador, a criança, o velho, o místico, o palhaço, o deprimido e um outro. Sim, um outro...

Dentro do Drummond também morava um outro. Procurei nas minhas coisas um texto desse outro que eu conheço. Queria transcrevê-lo inteiro. Não o encontrei no meio das minhas bagunças. Texto que é um urro de uma fera encurralada pelos caçadores. Texto fúria. As palavras são navalhas. O texto inteiro é um grito. Não me enviem poemas, não me enviem textos pedindo que eu os leia e dê minha opinião. O que querem é elogios. Mas não sou crítico literário. Quero ler o que eu quero ler e não aquilo que querem que eu leia. Quero é viver quieto a minha vida de poeta. Quero é ter tempo para os meus poemas. E as crianças? Tão bonitinhas. Lá vou eu caminhando pela calçada de Copacabana. Quero sentir o vento e ver o mar. Mas lá vêm elas. Por detrás delas, as professoras! Agarrem o velho urso, elas dizem! Vêm com papel e lápis na mão. Queremos entrevistá-lo. Quando foi que o senhor nasceu? Qual foi o poema que mais gostou de escrever? Não. Eu não nasci. Desisti de nascer quando vi que não poderia viver em paz!

Essas palavras não são de Drummond. São minhas. Mas eu as tirei das memórias confusas e duras que tenho do seu texto, o texto do Outro.

Ah! Poeta mal educado! Se lhe enviam poemas e textos é porque o admiram, é porque o amam. É assim que você reage a esses gestos de amor? E as crianças? Para um escritor poderá haver felicidade maior que se ver cercado de crianças que amam os seus poemas? E, no entanto, você reage com fúria e grosseria a esses gestos de amor! Mal agradecido. Grosseiro. Cara de manso, fingido!

A verdade é triste: são os que dizem amar que provocam a raiva. Os que não amavam o Drummond e não lhe enviavam poemas e textos não o perturbaram. Os caminhantes da praia que não o conheciam o deixaram em paz na sua caminhada. Acho que Albert Camus deve ter tido experiência parecida porque escreveu no seu diário que a melhor coisa no mundo é ser desconhecido. Isso não é verdade. Os que não são conhecidos gostariam de sê-lo. E é bom ser conhecido. Mas há um momento em que o ser conhecido se transforma em maldição. O dito amor dos admiradores rouba da pessoa o seu direito de viver a sua própria vida e de fazer o que lhe apraz. O amor tira a liberdade. Penso que Sartre estava com coisa parecida na cabeça quando escreveu que “ o inferno é o outro”.

É assim que acontece quando o amor não conhece a sabedoria da amizade. Aprendi um ditado que achei fantástico: Amigo não empata amigo. Isso mesmo. E até vou repetir: Amigo não empata amigo. A amizade cuida da liberdade do outro. Um amigo é um mestre em escutar, um mestre em adivinhar e um mestre em guardar silêncio. Um amigo conhece o sentido da palavra “Não”. O “não” é a palavra que estabelece os meus limites, limites que não podem ser invadidos, nem mesmo com a desculpa do amor.

Lembro-me de algo que me aconteceu, faz vários anos. Eu deveria fazer uma palestra numa certa cidade, na sexta-feira e outra, numa cidade próxima, no sábado. Aí recebi um telefonema amoroso na véspera da minha viagem para a primeira cidade. “Professor Rubem Alves, nós queremos trazê-lo até nossa cidade no sábado. É tão pertinho...” Respondi: “Bem que gostaria, mas já tenho um compromisso no sábado...” A voz, do outro lado, argumenta “ O senhor cancela o seu compromisso! Nós gostamos tanto do senhor...” E assim o diálogo foi comendo os minutos, nesse impasse irresolvível entre a minha impossibilidade e o desejo daquela pessoa que teimava porque gostava de mim. Era precisamente esse gostar que a impedia de ouvir o que eu estava dizendo. Compreendi que o impasse não se resolveria pela razão. Perdi a paciência. Um Rubem grosseiro saiu do seu quarto no albergue, arrancou-me o telefone das mãos e assumiu o controle: “Percebo que a senhora não fala português.” Resposta espantada: “ Como assim?” O Rubem grosseiro concluiu com uma navalha: “ A senhora não entende o sentido das palavras. A senhora não sabe o sentido da palavra não.”

Parece que o amor torna as pessoas incapazes de entender o não. Seria tão simples! O não exprime o meu limite, o meu desejo naquele momento. Não posso. Não quero. Se a pessoa que diz amar tivesse aprendido a lição da amizade responderia simplesmente: “Que pena! Mas haveremos de nos encontrar numa próxima vez.” Aí eu ficaria feliz por haver uma pessoa assim tão amiga, tão respeitadora dos meus limites.

Eram muitas as cartas que chegavam. Todas com letrinha de criança. Todas da mesma cidade. Todas de uma mesma escola ( estava escrito no remetente ). Deliciosas cartas de crianças. Por vezes cinqüenta de uma vez. Que coisa boa ser assim amado pelas crianças! As cartas eram resultado de um trabalho competente e amoroso de professoras. Elas haviam lido algumas das minhas estórias infantis, as crianças haviam gostado, e elas sugeriram que as crianças escrevessem para mim. Só tenho louvor a essas professoras. Se não fosse por um pequeno detalhe: todas as cartas pediam respostas individuais... Isso é covardia. Cinqüenta crianças escrevendo para um escritor. Um escritor escrevendo para cinqüenta crianças. Não justo. Não é possível. As crianças não me haviam interrompido na minha caminhada, hábito do Drummond.( Entre parêntesis: o que mata a caça não é a arma. O que mata a caça é o hábito. Porque a caça tem hábitos, o caçados se põe à espera, no lugar onde ela vai passar. E eis um animal vivo transformado em churrasco... Para não virar churrasco é preciso não ter hábitos. Sabedoria do bruxo D. Juan. ). O Drummond era caça fácil. Meu caso foi diferente. Elas entraram diretamente na minha toca, amoravelmente, sem pedir licença... As culpadas eram os professoras. Por amor. Imaginaram a felicidade que eu iria sentir. Mas não imaginaram o resto... Freqüentemente as pessoas pensam que um escritor é um ser aéreo, separado dos problemas práticos da vida, com um tempo vazio imenso, à sua disposição. As professoras, por amor, criaram expectativas na cabeça das crianças. Cada uma delas receberia uma longa carta do escritor. Uma expectativa impossível de ser cumprida. Porque o escritor, ser limitado, tem outras coisas para fazer. Inclusive vagabundear, ler, escutar música. O escritor também tem direitos individuais. Lembro-me de um dia, eu com o maço de cartas na mão, sem saber o que fazer, irritado. Senti então um objeto estranho numa das cartas. Uma criança colocara dentro do envelope uma bala de hortelã. Não chupei a bala porque ela me atravessou o coração...

O problema com as pessoas que amam é que elas acham o seu amor tão bonito e tão puro que dele só podem sair coisas boas. O amor, só amor, só se pensa. Não pensa o outro. É o caso do marido apaixonado que deseja fazer amor com a sua esposa. Para ele o seu amor é a coisa mais pura e linda do mundo. Mas ela lhe diz sorrindo, esperando ser respeitada: “Meu bem, eu não estou com vontade...” Ele argumenta de novo, fazendo poemas sobre o seu amor. Ela responde repetindo o seu desejo: “ Não estou com vontade...” O desentendimento vai se estendendo até que ela perde a esperança de fazer-se entendida pelo marido e diz: “Está bem, faça o que você quer fazer. Mas saiba que estarei odiando você...”

Aconteceu isso comigo esta semana. O dito amor insistia do lado de lá, eu respondia do lado de cá. Não posso. Estou muito cansado. Preciso ter tempo para mim mesmo. Mas o lado de lá, lado do amor que não aprendeu da amizade, não me ouvia, não me entendia, e repetia a mesma coisa: “Mas nós gostamos tanto do senhor.” Chegou um momento em que compreendi que as minhas razões era inúteis. Elas não importavam. Importava apenas que o outro tivesse o seu desejo realizado. Aí o espírito do Drummond baixou sobre mim...

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""Erótica é a alma""

Adélia Prado