quarta-feira

DIÁRIO DE UM APAIXONADO II

Fabrício Carpinejar
Sintomas de um bem incurável

Baixei todas as roupas do meu guarda-roupa, não tive nenhuma compaixão com alguma peça. Deixei somente os conjuntos que realmente uso. Metade do armário foi embora. Antes ficava em dúvida. As roupas eram mais lembranças do que pano. Perdoava as manchas, os rasgões, os trechos puídos. O apaixonado é um desmemoriado. É óbvio que tomei a atitude depois de comprar três conjuntos de camisas, calça e sapatos. Não sou tão forte assim.

O apaixonado precisa de uma gaveta para colocar seus pertences de bolso. O resto ele vai esquecer. A bandeja do aeroporto já é suficiente.

O pulmão do apaixonado é como o fígado ao bêbado. A abstinência só faz pensar bobagem. Não se é inteligente na dependência, mas se é muito mais engraçado.

O apaixonado perde o apetite. Um prato é muito distante. Come para não desmaiar. É movido a sexo. Ou pela antecipação do sexo. Realiza regime forçado. Deve ser o excesso de saliva que atrapalha a dentição.

Os monges invejam a crise de silêncio do apaixonado. Ele pesca horas a fio uma palavra e volta sem nada para a casa. Desossa o peixe que não existe, frita o peixe que não existe e lava a louça que ficou intocada. O apaixonado tem uma imaginação intensa como a de um terreno baldio.

Um dos problemas do apaixonado é que ele estranha novamente seus defeitos. Depois de aceitá-los com generosidade, depois de uma convivência pacífica e conformada, descobre que foi tolerante e revisa o peso, a altura e a massa muscular. Tudo é subitamente esquisito, seja a cintura, sejam as rugas, sejam os pés primitivos. O apaixonado deixará de conferir o espelho com tanta pressa. Se o par comentar algo que não gosta, não saberá disfarçar o mal-estar.

O apaixonado entra na relação independente e autônomo, afinal já passou por relacionamentos anteriores e pretende usar sua experiência. Finalmente vai colocar em prática o breviário da sedução e exercitar os conselhos dados aos amigos. No começo, parecerá implacável, seguro e confiante. Criou uma fortaleza de dar medo. Depois de alguns beijos e de entortar o pé sem perceber, sacrificará as táticas e será sincero como nunca na vida. Falará dos seus medos, confessará segredos que nunca ousou contar, irá se declarar de modo precoce contrariando sua idéia de que não poderia fazer isso. É necessário colar o adesivo de "frágil" no apaixonado, não sobrevive de um endereço a outro, de uma certeza a outra. É um corpo em mudança.

Não é aconselhável escutar uma conversa entre apaixonados. Que idioma é aquele? Filme eslavo? Nada sociável. Nenhum dos dois entenderia se não houve a paixão entre eles para explicar e traduzir. Cheia de sinais, arrebatamentos e questionamentos imprevistos. Uma conversa epilética, com ninguém por perto para segurar a língua.

O apaixonado avisa que não quer se envolver para depois cobrar cada minuto da separação.

A repetição é o que o apaixonado mais gosta. Ele fala a mesma coisa durante horas sem enjoar. O vocabulário torna-se de uma criança de cinco anos. Nenhum apaixonado consulta o Aurélio. Pois a linguagem separa.

O bar para um apaixonado é como se fosse sua casa. Ele não repara, mas espalha os casacos e as bolsas pelas cadeiras. Não tem pudor, não pensa no pudor, apaga o restante dos fregueses, quer ficar junto de qualquer jeito. Com apenas um casal de apaixonados, o bar está lotado.

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