quarta-feira

ELA NÃO VAI ENXERGAR

Fabrício Carpinejar

Ela poderá ter amnésia, alzheimer, mas dele não esquecerá.
Esquecerá de si, mas dele não. Dez anos separada, mas dele não esquece.
É ele. É ele. É ele.
Encontra sempre um jeito de falar dele.
Mesmo quando não há jeito. Mesmo quando não há assunto.
Mesmo quando não há gente para ouvir.
Ele Ele Ele.
Ele já a esqueceu, ele já mudou de vida. Casou três vezes.
Nem quer voltar, traiu e se despediu.
Colocou na carteira a dor, a pressão, a angústia de não ser ele.
Fechou a estrada, partiu, estornou cada palavra.
Ela, não. Ela acredita que o melhor dele depende dela.
Nenhuma mulher o conhecerá como ela. Ela não tentou de novo.
Não mudou.
Comenta que ele ficou estranho, diferente, forasteiro,
que deveria conhecê-lo quando estavam casados.
Era outro, era límpido, era lindo.
Ela Ela Ela.
Ela sonha que ele morre e pede desculpa.
Ela sonha que ele morre por um dia com ele. Ele nem pesadelo com ela.
Nenhuma franja por ela, uma barba por ela, uma cicatriz por ela.
Ela é seu segredo. Ela não faz segredo. Ele não vai enxergar.
Ela não vai se enxergar.
Ele Ele Ele.
Quando ele chega perto dela, ela prepara o cabelo,
compra roupa, atende o telefone no primeiro toque.
Quando viaja longe, põe uma cadeira na varanda e escreve sobre ele.
Ela não amou mais. Não beijou mais. Não dançou mais.
Guardou-se para ele.
Para ser fiel a ele, sem padre, sem pastor, sozinha.
Fiel mais do que a própria sanidade.
Amor preso como uma freira no pátio da igreja,
amor escandaloso como uma feira no meio da rua.
Só se casa uma vez, ela responde. S
ó se separa uma vez, ele responde. Ele guardado na boca como um dente.
Uma aliança no dente.
Ela Ela Ela.
Ela prometeu não esquecer. Ele esqueceu as promessas.
Ele já trocou de escada, ela no mesmo degrau. Ele não menciona o nome dela.
Nem lembra de sua idade. Enterrou. Apagou.
Deixou o silêncio sem tocar na comida.
Ela não ouviu direito, ouviu torto, ouviu o que pensava.
Comemora ainda o aniversário de casamento, o aniversário do noivado,
o aniversário do namoro. Ele se despediu e ela o chamou para dentro.
Ele vendeu sua parte da casa, ela manteve o quarto.
Ela não cansa de contar a mesma história com ele.
Naquele tempo, naquele tempo, naquele tempo. Ele não cai na cilada.
Não abre a guarda. Não manda cartas. Não mexe em fotos.
Ela o insulta para qualquer um. Avisa que ele não presta. Só presta com ela.
Fala mal para falar bem. Fala bem para falar mal.
Mas fala, fala, fala.
Ele Ele Ele.
As amigas não têm como avisá-la. Os amigos não têm como avisá-lo.
Ele é meu Ele é meu Ele é meu.
Ela finge que terá uma segunda chance. Ele foge da primeira.
Um hábito que já virou sina. Uma calma que já virou cama.
Um amor doente como se fosse certo como se fosse santo como se fosse puro.
Como se os demônios cortassem as unhas, como se os anjos comessem as asas.
Ela acredita que deve salvá-lo. Ele acredita que deve se salvar dela.
Ela Ele Ela Ela Ela.

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