terça-feira

HOJE NÃO VOU ESCOLHER

Fabrício Carpinejar

A vida não são escolhas. Escolhemos mais do que precisamos. Escolhemos mais do que queremos. Escolhemos para nos convencer de que avançamos e que somos importantes. Escolher transmite a sensação de decisão: estamos mandando em nossa vida. Pára um pouco, sem nada para fazer. E veja o medo que temos de não estar respondendo alguma coisa, alguma ordem, alguma urgência. Pára um pouco, o mundo não vai nos demitir. A família não vai nos demitir. Os amigos não vão nos demitir. Só perdemos o que não somos. O medo de ser esquecido nos afasta da própria solidão. Transformamos tudo em urgência. Então, não há mais urgência. Há a imperiosa aparência de se manter ocupado e ativo. Ocupado é reagir cada vez mais rápido no trabalho, no amor, no repertório prosaico. Reagimos, não agimos. Escolhemos não ponderando se é realmente uma opção, ou apenas uma seqüência. Desvalorizamos as escolhas ao igualá-las. Não encontrava o carnê do IPTU previsto para pagar na terça. Sofro de azia com a mais remota inadimplência. O purgatório não morreu nos meus intestinos. Nem os juros me aquietam. A paranóia de ser cobrado e perder de repente a fama de honesto (só aqui mesmo a honestidade é fama, não hábito). Limpei as gavetas do armário. A primeira e a segunda, explorei as reentrâncias de minhas bolsas, os bolsos dos casacos, empreendi uma faxina na dispensa, convoquei a mulher a mexer em suas coisas, meu deus, já não importava achar a maldita prestação, eu amaldiçoava o tempo que estava perdendo ao procurá-la. Foram três horas e os nervos remoídos: deixei de ler livros, de escrever, de assistir filmes, de passear. Eu me cobrava – de um jeito patético – por não aproveitar meu domingo. Com dois dias de folga, recriminava-me ao desperdiçar parte deles durante a caça de um folheto horrível branco e preto quadriculado. Olha o ponto em que cheguei? Criei uma oração para diminuir a ansiedade: Que bom que faço algo que não será lembrado. As árvores ainda existem quando não estão florescendo. Amém. Lembrei de meu avô e sua religião de permanecer meio-turno na garagem aplainado madeiras. Não buscava o reconhecimento pelo material de sua carpintaria, nem se preocupava com exposições. Quando gostava, colocava anonimamente um dos objetos na estante. Nunca assinou as peças. Ele sempre se atrasava para jantar, aparecia na terceira chamada, sentava e saía de novo para lavar as mãos. Ele perdia seu tempo? Ou de minha avó com seu tricô no sofá. Uma malha que daria para um dos netos, enovelada por meses em suas unhas de cera, com o rigor das basculantes se fechando a cada entardecer. Ela perdia seu tempo? Duvido, ele pensavam seu tempo. Ainda sentia dó deles, confundia aquilo com tristeza e abandono. De onde eu tirava esse pensamento? Eles sofriam de solidão porque desfrutavam de solidão para sofrer. A solidão é admirável. A solidão é o caráter do homem. A solidão é a sua fidelidade ao corpo. Continuarei revirando meus papéis, até entender, depois da raiva, depois da minha limitação, que a quinta parcela do IPTU me devolveu o direito de estar em casa. Não sei se você pensa igual, mas hoje tenho tempo a perder.

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