segunda-feira

DIÁRIO DE UM APAIXONADO

Sintomas de um bem incurável
Foto do Filme: "Fale com Ela ", Pedro Almodóvar

Fabrício Carpinejar


Perdoai a boca, não salta como os olhos.
Perdoai os olhos, guardo sua nudez em minha boca.
Não desejo beber outra sede, quero fechar os lábios ao café, ao vinho, à água.
Nada brilhará mais os dentes.
Deixarei o mel de sua fome crescer em mim com a rapidez da barba.
O gosto do seu sexo não é doce, não é salgado, é ao mesmo tempo toda a mesa.
Respeito mais as ausências, deixo as pessoas passarem em minha frente, não ri tanto como agora.
Aceito críticas com o desprendimento de elogios.
Nunca amei tanto as crianças ou a infância que me faltou.
Os pátios têm a religiosidade de vitrais.
Observo os cachorros como anjos atrapalhados acomodando suas asas.
Fico comovido na janela com o jeito que lambem as patas, os becos das patas.
Sou capaz de demorar três horas olhando os cachorros dormindo, para não aprender nada a não ser os cachorros dormindo.
O apaixonado é um comovido à toa.
Pára de repente em si como se fosse chuva.
Pula de repente de si como se fosse tarde.
Vontade de conversar com você mais do que tive de me conhecer.
Vontade de morrer o mundo e ser pego em flagrante.
Vontade de encolher a cidade em um quarto.
Vontade de respirar sua respiração, pensar ter falado e não falar.
Vontade de não ter existido antes para não me contradizer.
O apaixonado não é egoísta.
Ele larga seus hábitos, para conhecer verdadeiramente quem ele gosta.
Faz greve de sua personalidade.
Muda a rotina, os horários, se esvazia dos preconceitos.
No momento da paixão, cria necessidades súbitas.
O que considerava fútil torna-se útil, o que considerava útil vira fútil.
Se ele não gosta de bossa nova e ela sim, sairá à cata de tudo o que houver sobre o assunto.
Vai se transformar em um especialista numa semana.
Cursos intensivos são perfeitos aos apaixonados.
Mais do que isso, não presta atenção.
Menos do que isso, não convence.
O apaixonado é um ansioso.
Precisaria ser dispensado do emprego durante o período.
Suas distrações são maiores do que os acertos.
Qualquer empresa deveria proibir a presença dos apaixonados
- eles não estão nem aí.
A produtividade cai, os contatos rareiam, as desculpas aumentam.
Não entendo como não existe uma licença maternidade e paternidade para a paixão.
O apaixonado é um feriado.
Ele se perde no trabalho porque está concentrado na falta.
Ele é a própria falta.
Preste atenção no jeito de um apaixonado sentar, torto e desajeitado, ele não ocupa toda a cadeira, é como se dividisse seu canto com alguém imaginário.
O apaixonado pode fazer as cenas mais hilariantes na rua sem perceber.
Chorar no meio-fio da calçada, arrepiar-se de ciúme, gritar diante de um bar lotado.
Seu sentimento é uma pessoa.
O apaixonado muda de opinião com receio de ser abandonado e se abandona para se encontrar diferente.
Ninguém entenderá o apaixonado a não ser ele mesmo.
Ele volta a fazer amizade com sua solidão.

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""Erótica é a alma""

Adélia Prado