quinta-feira

FILHOTE-DE-CRUZ-CREDO

Foto do filme: Nosferatu, o filme que Murnau dirigiu em 1922.

Fabrício Carpinejar

Não se deve procurar Deus só quando se precisa. Procuro Deus especialmente ao discordar Dele. Quando fico com um dilema sério, escuro que nem caixa d´ água, espero sete dias antes de responder alguma coisa. Toda minha dúvida tem missa de sétimo dia. Sete dias são suficientes para velar, reconhecer e aprender a amar uma ausência, assim como se amava uma presença. Toda dúvida merecia anúncio no jornal convidando os familiares e amigos para celebrar seu fim. Uma dúvida é motivo de hóstia. Não sofri pena de mim, piedade, não quis ser um outro mais bonito. Já tive raiva, ódio de mim, por ter machucado alguém sem propósito, por absoluta incompetência afetiva. Mas compaixão, nunca. Ao conversar com uma mulher de olhos azuis, converso mais com os olhos azuis do que com seus dentes. Os olhos azuis são meus bisavôs. Uma vez, bem recente, percebi que a amiga de olhos azuis reparava insistentemente ao meu rosto e balbuciava, sem chegar a formar o que queria, como que fazendo bolha de sabão para que eu pudesse estourar. Voz não saía, saliva. De repente, ela pergunta, destruindo a elegância da espuma: "a má formação de teu rosto, do teu queixo, é resultado de um acidente?". Eu me calo e penso na missa de sétimo dia da dúvida. Seria fácil responder que sofri um acidente, que destronquei a minha face pela imposição do destino, gerando alívio de que algo me aconteceu externamente para justificar o semblante estranho e confuso de traços. Seria fácil dizer, por exemplo, de que caí quando bebê e fui salvo em uma incubadora. Seria fácil afirmar que levei uma surra de um macaco no zoológico ao dar pipoca e tive que ser reparado a tempo no hospital e os médicos fizeram o melhor que podiam. Porém, minha feiúra é autêntica. Não há cicatriz, corte ou ferimento que tenha sido sarado. Nasci filhote-de-cruz-credo. Não passo a mão na cara esperando um milagre. Assim como as mulheres se gabam de não terem aplicado silicone ou efetuado lipoaspiração, alegando que sua beleza é natural, reitero que minha fealdade é espontânea. O desvio de septo não surgiu de um soco, não desci errado do ventre, minha face estupidamente longilínea, como uma bacia de cortar cabelo, já era assim desde o primeiro dia. Minha boca é miúda, com o céu da boca estreito. Sou feio de nascença. Minha barba me mostra mais do que me esconde. Não tenho orgulho, tampouco resignação. Sobra realidade em meu queixo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

""Erótica é a alma""

Adélia Prado